São Paulo, 20 de novembro de 2019.
Hoje é feriado municipal em São Paulo, em comemoração ao dia da consciência negra. Decidi aproveitar a folga e visitar o Eataly (para os que não conhecem, trata-se de um grande mercado com restaurantes integralmente dedicado à gastronomia italiana, presente em diversas localidades do mundo, como Florença, Nova York, Dubai, Tóquio, Munique e etc., à semelhança de uma Disney para adultos que gostam de comer e beber). Rodei o mercado até decidir onde sentaria e grita o fato de os espaços públicos pagos, como restaurantes, como o Eataly, estarem ocupados por brancos, apesar da maioria étnica do país ser negra, ou parda. Os únicos negros presentes estão aqui trabalhando.
No dia da consciência negra, os negros continuam na senzala e os brancos festejam na casa grande.
Não quero passar a ideia errada e prejudicar a imagem do citado espaço, que uso apenas como exemplo. Essa é uma realidade geral, que se repete nos restaurantes dos Jardins, da Dias Ferreira (no Rio de Janeiro) e em todos os bairros de classe alta no Brasil. Mesmo em Salvador, se você for tomar drinks no Hotel Fera, não encontrará negros dentre os frequentadores, mas sim como trabalhadores, se muito.
A situação se agrava quando, em um olhar mais atento, verifica-se que mesmo nos postos de trabalho, os negros ocupam as posições de menor evidência, ou, sendo claro, os postos escondidos.
Em quantos bons hotéis do Rio, ou de São Paulo, encontramos numero expressivo de recepcionistas negros? Já em movimento inverso, a maior parte das camareiras são negras. Por que não podem ser os negros a primeira impressão que o cliente tem do estabelecimento? Será que efetivamente é tão difícil encontrar negros qualificados para essas vagas?
Pausa no raciocínio, mas sem fugir ao tema. Na mesa ao lado, um casal caucasiano, ela de jeans claro e cintura alta, blusa branca esvoaçante, pulseira discreta e fina, anel com uma bela pérola e cordão de ouro com um crucifixo e ele de bermuda social, mocassim, camisa polo azul marinho, cabelo com gel penteado para trás, óculos de armação grossa e um relógio Tag Heuer, reclamam dos serviços da diarista e arrematam, antes de mudar de assunto: “Elas são todas iguais”.
Retomo.
O que observo e aqui reporto não é capaz de causar espanto. Vejam a nossa história.
O Brasil foi descoberto em 1500 e desde seus primeiros dias contou, ainda que de forma oficiosa, com a escravidão como sua pedra fundamental. Em 1539 chegaram os primeiros navios negreiros. Em 1566, Mem de Sá regulamentou a chamada escravidão voluntária dos povos nativos, indicando que que os indígenas “poderiam vender-se a si mesmos em caso de extrema necessidade”.
Após séculos de exploração forjando a identidade nacional através da carnificina negra, cedendo à pressão inglesa e como forma desesperada de enfrentar uma justa e essencial (inclusive nos dias de hoje) reforma agrária, em 13 de maio de 1889 foi sancionada a Lei Imperial nº 3.353, conhecida como Lei Áurea, abolindo a escravidão. Abolindo, pero no mucho, como se verá mais adiante.
Os laços escravocratas eram tão intensos, que sua abolição contribuiu para a queda da monarquia 6 meses depois.
O ponto que quero trazer aqui é que o Brasil tem 519 anos de existência, desde o seu descobrimento. Desses 519 anos, 388 foram construídos por mão de obra de povos escravizados. Sendo assim, apenas 131 anos de nossa história transcorreram sob a premissa de trabalhadores “livres” (em lei, mas não sob o aspecto social).
Vejam que nosso Brasil “lindo e trigueiro” tem de existência escravagista, quase três vezes o tempo que tem de povo livre.
Somente no ano de 2.277 esse país vai existir por mais tempo como povo livre, do que como povo escravizado. Isso significa que muito provavelmente e respeitados os avanços da medicina, os brasileirinhos que nascem enquanto eu escrevo esse texto, não viverão suficiente para assistir à essa virada de jogo.
Apesar da abolição legal e da visão romantizada criada acerca da princesa Isabel, a redentora, a realidade não foi assim tão benevolente com os negros libertos, que jamais foram indenizados, tampouco receberam auxílio do estado para construção de suas respectivas vidas. Despejados e sem dinheiro, restou-lhes a marginalização, que perdura até os dias de hoje.
É em razão de nossa história, que invocar meritocracia como justificativa para extinguir cotas raciais não passa da mais pura má-fé. Negros, desde seu sequestro na África e sua imigração forçada para o Brasil, bem como após sua libertação, jamais receberam oportunidades em condições isonômicas com os brancos.
Não precisamos de muito para confirmar essa verdade. Pense, no Brasil de maioria negra e parda, quantos presidentes da república foram negros? E vice-presidentes? E presidentes do Senado? E presidentes da Câmara? E governadores do Rio de Janeiro? E Governadores de São Paulo? A resposta é a mesma para todas as perguntas: zero.
A única exceção é para a presidência do Supremo Tribunal Federal, que existe desde 1808 (então chamado de Casa de Suplicação e, depois, em 1822, com a independência, chamado de Supremo Tribunal de Justiça, passando a ser chamado de Supremo Tribunal Federal apenas em 1890, após a proclamação da república), que já foi honrado com a presença de um negro em sua presidência. Ainda assim, foi apenas um negro em 211 anos de existência.
Será mesmo que dia da consciência negra é coitadismo?
Ágatha Vitória Sales Felix, menina negra de 8 anos, foi a 16ª criança baleada em 2019 no Rio de Janeiro. Ágata foi a 5ª vítima fatal; em termos claros, a 5ª criança assassinada pela guerra urbana, que extermina negros periféricos.
Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, menina negra de 5 anos, foi a 17ª criança baleada em 2019 no Rio de Janeiro. Ketellen foi a 6ª vítima fatal; em termos claros, a 6ª criança assassinada pela guerra urbana, que extermina negros periféricos.
Das 6 CRIANÇAS MORTAS, quantas eram brancas? Das 17 CRIANÇAS BALEADAS, quantas eram brancas? A resposta é a mesma para ambas as perguntas: nenhuma.
Entre 2006 e 2016, enquanto as execuções de negros subiram 23,1%, os assassinatos de não negros diminuíram 6,8%. Em 2016, a taxa de mortalidade violenta de negros foi de 40,2 por 100 mil habitantes. Entre não negros, a taxa foi de 16 em cada 100 mil habitantes.
A chance de um negro enfrentar uma morte violenta é quase 3 vezes maior que a de um branco, sendo que no estado do Alagoas a razão é quase 13 vezes maior. Sim, T R E Z E vezes maior.
Como resultado das eleições de 2018, de acordo com informações do TSE, no “Brasil do meu amor, terra de Nossos Senhor”, das 1.626 vagas para deputados distritais, estaduais, federais e senadores, apenas 65 foram ocupadas por candidatos autodeclarados negros, o que equivale a 4%. O número de eleitos sobe para 444, ou seja, 27%, se somados os eleitos que se declaram negros e pardos. Muito? Não mesmo, já que a população autodeclarada negra, ou parda é justamente o dobro disso, 54,9%, segundo o IBGE.
Quando verificada a situação no Judiciário, o cenário é ainda mais indigesto. O CNJ divulgou levantamento em setembro de 2018 onde indica que apenas 1,6% dos juízes, desembargadores e ministros são negros e 16,5% são pardos, em um universo de 11.348 magistrados.
Os fios da senzala fazem parte do nosso tecido social em todas as áreas que se propor a observar. Dados divulgados pelo IBGE, em sede da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, indicavam, em 2017, que dentre a população negra, o desemprego era de 14,4%; já dentre os pardos, era de 14,1%; dentre os brancos, era de 9,5%. Na época, a média nacional era de 12%. Ou seja, mesmo dentre os excluídos, os negros e pardos estão muito mais excluídos.
Aqui no Brasil, “terra boa e gostosa”, temos um fenômeno curioso, o das leis que não pegam, tal qual multa para quem joga lixo no na rua, não trafegar pelo acostamento, juiz imparcial e, como os números confirmam, a abolição da escravatura.
Hoje, durante entrevista concedida por Antonio Pitanga ao Globo News, o célebre ator, militante da causa negra, pontuava seu incomodo em notar que poucos lugares da plateia teatral são ocupados por seus pares. A repórter, então, conclamou os negros a irem ao teatro. Em que planeta essa menina vive? Os negros não vão ao teatro porque não têm dinheiro! Porque ocupam 78,5% dentro do universo dos 10% mais pobres do Brasil e não porque são incultos, ou desinteressados por manifestações culturais.
Dito isto, não há como negar que há sim genocídio negro, que há sim um regime de exclusão social praticado contra os negros em todos os ambientes e aspectos, queira o Coronel Tadeu, aquele que depredou exposição na Câmara dos Deputados que denunciava o extermínio dos periféricos pelo Estado, ou não.
Chega de complacência com essa visão de Ary Barroso. Aqui não é terra de mulato inzoneiro, nem de morena sestrosa.
Não há mais espaço para assimilar a tese que romantiza a miscigenação brasileira, inicialmente propagada por Von Martius e reforçada ao longo da história, de que o nosso povo é a confluência de 3 caudalosos rios que se encontram e se misturam naturalmente. Não houve e não há nada de natural na forma como os negros e nativos foram integrados à estrutura social escravocrata iniciada no século XVI e que hoje, com nova roupagem, segue viva. Nossa miscigenação foi cunhada por estupros, objetificação do corpo negro, desumanização e violência intensa.
Pode parecer estranho e, para alguns, até vazio, um texto defendendo a necessidade de uma data para refletir e celebrar a consciência negra escrito por um sujeito branco, loiro, de olhos claros. Pois o que digo em resposta é que se trata de dever moral daqueles que tem mais voz, gritar em defesa daqueles que tem menos.
Enquanto os negros não ocuparem os espaços, em pé de igualdade com os brancos, o dia da consciência negra é essencial para manter viva a percepção de que a abolição da escravatura não foi um ato em si, mas se trata, em verdade, de uma luta contínua e permanente.
Aos negros e pardos, minhas mais sinceras homenagens e agradecimentos. Contem comigo nessa luta civilizatória.
Thiago Carvalho, coordenador do Diversidade 23-RJ