A polarização do Brasil extrapola fronteiras e incendeia a região
A Bolívia ia bem à esquerda, o Chile era um exemplo na centro-direita e, de repente, os dois regimes implodem, com o povo na rua, a oposição fortalecida, os governos acuados. O que há em comum entre eles? A insatisfação crônica da sociedade, que agora usa o poder das redes sociais e cria falsos mitos para por fogo no circo.
Foi-se o tempo dos movimentos que se alastravam em ondas e na mesma direção na América do Sul. Hoje é de cada um por si, com eleições incertas no Uruguai, a volta do nefasto kirchnerismo na Argentina e protestos grandiosos no Chile, Bolívia, Equador e Peru. Sem falar na estraçalhada Venezuela.
O mundo abriu os olhos. E, quando se olha para a América do Sul, depara-se com o Brasil, o maior, mais rico e mais populoso país da região, o que costumava dar as cartas e agora vive suas próprias tensões internas, sujeito aos reflexos das crises ao redor.
Aqui também se dá, como nos vizinhos, mas sem confrontos de rua, tiros e mortes, o grande embate entre a velha esquerda e a nova direita, entre o populismo de Lula e um Bolsonaro que tenta se equilibrar entre o seu reacionarismo e o neoliberalismo de Paulo Guedes.
Os 13 anos de Evo Morales na Bolívia trouxeram desenvolvimento e inclusão social. Enquanto o Brasil passou por dois anos seguidos de recessão e patinou em 1% de crescimento ao ano, a pequena Bolívia, país mais pobre da região, atingiu a média de 4,9%. E, se o Brasil atravessa governos e regimes à direita e à esquerda sem efetiva inclusão social, organismos internacionais atestam que a Bolívia reduziu a miséria à metade.
Então, o que deu errado? O grande erro de Evo Morales, o mais pragmático dos “bolivarianos”, foi institucional. Foi a crença de que só ele é capaz de “salvar” o país. Foi assim, seguindo os passos de Hugo Chávez, que ele driblou a decisão popular contra um quarto mandato e ganhou num Judiciário amigão o direito de concorrer. Daí à denúncia de fraude foi um pulo.
A sociedade reagiu dando palanque para os líderes de oposição e pedindo a interferência ainda velada das Forças Armadas. Mas a guinada começa mal. Além do gesto da renúncia, Morales pediu aos adversários que pacifiquem a nação, mas o oposicionista Luís Camacho radicalizou, exigindo a prisão dele e seus aliados. Para que? Se Morales, o vice, o governo e a cadeia sucessória ruíram por inteiro, isso só serve para acirrar os ânimos. Vitoriosos devem ter grandeza.
No Chile, como já explorado, a questão não foi política e social, na medida em que os indicadores iam bem, mas o povo ia mal. Diz-se que quem tem fome tem pressa. E quem está na base da pirâmide grita que as fórmulas de crescimento não estão gerando igualdade e inclusão.
Os ingredientes e as palavras de ordem já pipocavam no Brasil e emergem com força quando Lula sai da cadeia atacando os três pilares do governo: Bolsonaro, Guedes e Moro. O governo contra-ataca com uma arma válida contra Cristina Kirchner na Argentina, mas é acessória no Chile e na Bolívia: o combate à corrupção. Lula acusa o regime Bolsonaro de antipovo, Bolsonaro e Moro martelam que Lula é “condenado” e “criminoso”.
Não se trata de um debate sobre o que é melhor para o País e para todos, mas uma guerra de acusações e de desconstrução de adversários, em que vale tudo, principalmente o jogo sujo das fake news. Isso piora muito porque Lula precisa de Bolsonaro para reanimar sua tropa e Bolsonaro usa Lula para reaglutinar o bolsonarismo.
A reunião dos Brics começa hoje em Brasília com a Rússia acusando a direita de ter dado um “golpe” na Bolívia e os investidores pisando no freio. Quem quer investir numa confusão dessas, que vem de fora para dentro, mas encontra campo fértil dentro do próprio Brasil? (O Estado de S. Paulo – 12/11/2019)