Cristovam Buarque: Quem paga a conta

Todos se perguntam por que as multidões chilenas vão às ruas contra políticas públicas que, adotadas há décadas, deram ao país os melhores indicadores econômicos e sociais do continente. A resposta é que nenhum setor quer pagar a conta da sustentabilidade do modelo em marcha, e a internet permite mobilizações sem líderes, partidos ou mídia tradicional. Todas as manifestações ao redor do mundo têm a logística das redes sociais e a política do custo da sustentabilidade do crescimento econômico depredador e concentrador que caracteriza nossa civilização.

Sem o surgimento da internet e seu poder de interação e mobilização, essas manifestações não ocorreriam, porque passariam pela intermediação de partidos que se entenderiam; tampouco elas ocorreriam sem a motivação política decorrente do descontentamento com a realidade. Não há como continuar no rumo do progresso que promove e mantém pobreza, desigualdade, corrupção, mudanças climáticas, degradação de serviços públicos, violência urbana, desemprego. Apesar das vantagens com o conforto e a riqueza, há um mal-estar geral com os custos decorrentes do crescimento econômico.

Não é mais possível seguir destruindo a natureza com ação cujo efeito é catastrófico nem usar o Estado, sem sacrificar a moeda, endividar as gerações futuras e prejudicar os serviços essenciais. A modernização da robótica leva ao desemprego de milhões de pessoas. A pobreza e a desigualdade atingiram proporções de calamidade social.

No livro O Erro do Sucesso — A civilização desorientada e a busca de um anovo humanismo, todos esses problemas são vistos como consequência dos êxitos do desenvolvimento que demonstra agora ser insustentável, mas ninguém quer arcar com o preço das mudanças necessárias para reorientá-lo. Todos vão às ruas contra os defeitos da civilização construída graças ao progresso científico, tecnológico e econômico, mas nenhum setor ou pessoa quer abrir mão do que foi conquistado graças aos custos e desequilíbrios que provocam a insustentabilidade.

O modelo de desenvolvimento em marcha nas últimas décadas esgotou a capacidade de depredar a natureza, concentrar a renda, usar o Estado, abolir a pobreza, distribuir renda. Dificilmente os que vão às ruas se unirão em torno de propostas que permitam enfrentar os desequilíbrios, sacrificando benefícios adquiridos graças ao adiamento das medidas necessárias à sustentabilidade.

Todos querem um meio ambiente limpo e equilibrado, mas não aceitam pagar o preço de consumir menos, parar de viajar, trocar o carro privado pelo transporte público. O Chile equilibrou sua Previdência, jogando o custo sobre os aposentados, mas quem está disposto a pagar a conta da sustentabilidade: os jovens ativos aumentando suas contribuições, os muito ricos com fortes cortes em suas rendas, consumo e investimento, as classes médias com sacrifício de gastos em serviços públicos, aceitando a falsa moeda da inflação?

Muitos estão contra a privatização de serviços públicos, mas quantos aceitam pagar o custo dos serviços estatais com sustentabilidade fiscal ou com o desvio de recursos da educação, da saúde, dos salários dos servidores ou com aumento de impostos? Todos querem reduzir a desigualdade social e abolir a pobreza para construir uma civilização decente e sustentável socialmente; mas quantos estão dispostos a aumentar impostos sobre os bens de consumo para transferir renda aos pobres e elevar a qualidade da educação de base e de saúde para seus filhos? Sobretudo quando se tem a desculpa de saber que esse dinheiro pode terminar nos bolsos de políticos corruptos.

As manifestações no Brasil, em 2013, no Chile, em 2019, e em quase todas as partes foram iniciadas por causa do aumento no preço de tarifas do transporte público ou aumento no preço dos combustíveis. Todos são unânimes contra os reajustes. Mas quem aceita pagar o custo do subsídio necessário aos que usam o transporte, garantindo sustentabilidade necessária às finanças públicas e à continuação dos programas de subsídios?

O descontentamento é geral porque o modelo insustentável se esgotou e ninguém quer pagar o sacrifício necessário para lhe dar sustentabilidade. Além de que a internet facilita as mobilizações, ninguém confia nos políticos, e não há filósofos com imaginação para propor um novo paradigma social, nem estadistas capazes de convencer o povo a pagar o custo para construir um futuro sustentável. (Correio Braziliense – 05/11/2019)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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