Cristovam Buarque: Fatos incompletos

Na semana passada comemoramos três fatos incompletos. A queda do Muro de Berlim foi lembrada com a importância de um dos maiores feitos da história da humanidade. Pode-se dizer que foi um destes “cisnes negros” que não imaginamos viver para ver, até quando ocorrem, para nossa surpresa. Quantos imaginariam ver um papa argentino, ou a China como a primeira potência do mundo? Um presidente norte-americano negro ou um presidente brasileiro operário?

Quem observava a evolução na geopolítica mundial nos anos 1980 podia perceber as dificuldades que a União Soviética atravessava pela ineficiência da economia, rejeição ao autoritarismo e ânsia de liberdade das repúblicas nacionais. Mas era impossível esperar a derrubada do Muro para tão cedo, tanto quanto o fim da União Soviética, logo depois. Ainda menos que os países do Leste Europeu saltariam tão radicalmente para o capitalismo. A derrubada daquele muro de concreto significou o fim da separação entre pessoas conforme o regime político em que viviam.

Mas no lugar da Cortina de Ferro que ele representava, foram construídos muros separando nações, famílias e pessoas. Foram cavados milhões de fossos ou usaram o Mediterrâneo para dividir a humanidade. Trinta anos depois da queda do Muro de Berlim ,pode-se contar em dezenas de milhares as pessoas que morreram tentando atravessar os muros e mares que separam a pobreza da riqueza. Com outros nomes, outros lugares, uma Cortina de Ouro serpenteia o planeta dividindo, separando e apartando as pessoas dentro de seus próprios países.

Comemoramos 30 anos de uma derrubada incompleta do Muro de Berlim. Impedir o pobre de sair da pobreza em que vive para uma região com abundância é tão indecente quanto impedir uma pessoa saltar um muro para sair da ditadura em direção à liberdade. Na mesma semana dos 30 anos da queda do Muro de Berlim, aqui no Brasil comemoramos o que muitos não acreditavam ver em vida: as estatísticas mostrarem que em nossas universidades estatais o número de afrodescendentes é maior do que o número de eurodescendentes, refletindo a realidade demográfica da sociedade. Mas essa comemoração fica incompleta quando olhamos o quadro geral da educação brasileira com 12 milhões de adultos analfabetos; quando observamos que nossa educação de base está entre as piores do mundo e quase, certamente, a mais desigual conforme a renda da família. Não ampliamos o número de pobres concluindo ensino médio com qualidade.

É possível dizer que a decência da proporção de afrodescendentes superar os eurodescendentes vem de décadas da adoção de cotas raciais para ingresso nas universidades, mas não de melhoria na qualidade da educação de base para todos os pobres, brancos ou negros. Parece que estarmos repetindo com as universidades estatais o que fizemos com a escola pública de base, federais ou estaduais. Enquanto eram para poucos, mantínhamos a qualidade, mas ao abrir suas portas para todos, abandonamos essas escolas entregando-as aos municípios sem recursos.

Devemos comemorar o esforço para mudar a cor da cara da elite universitária, mas é uma comemoração incompleta, como ao comemorar a queda do Muro. Porque ainda não temos o que comemorar na qualidade e na equidade da educação de base, nem na garantia dos recursos necessários à universidade estatal.

Em grande parte, por causa desse descuido com a educação de base, na semana passada, comemoramos os 130 anos de Proclamação da República sabendo que ela ainda está incompleta. Em 1889, fizemos uma nova bandeira que, 130 anos depois, tem duas vezes mais brasileiros que não a conhecem, por não saberem ler “Ordem e Progresso”. Nossa República mantém até hoje uma sociedade tão ou mais dividida quanto em muitas monarquias.

Nossa população é dividida entre uma minoria “nobre” e uma imensa maioria excluída, como de segunda classe, sem moradia, saúde, educação, cultura, liberdade; prendemos pequenos ladrões que não podem pagar advogado e deixamos soltos os grandes ladrões corruptos que podem postergar seus julgamentos em instâncias intermináveis. Na nossa República, os políticos e juízes não respeitam a “Res Pública”, base fundamental de um regime republicano.

Comemoramos a República antes de completá-la, assim como celebramos a derrubada do Muro de Berlim construindo outros muros, e festejamos o acesso de afrodescendentes à universidade sabendo da péssima qualidade da educação de base de nossos pobres. Tivemos uma semana de comemorações de fatos incompletos. Comemoramos incompletudes. (Correio Braziliense – 19/11/2019)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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