Alberto Aggio: A história volta a pulsar no Chile

Em outubro o Chile explodiu. Por vários dias milhares de pessoas saíram às ruas em marchas de protesto que invariavelmente se tornaram violentas. Estavam no foco dos manifestantes o Metrô de Santiago, as empresas de energia, os bancos controladores das famosas AFPs, que “garantem” a aposentadoria da maior parte dos trabalhadores chilenos, dentre outras. O aumento das passagens do Metrô, a partir de determinado horário, foi o estopim da grande explosão. Mas, como no Brasil de 2013, os chilenos também gritaram “não é só pelos 30 centavos”. E, de fato, não era. Nesse “octubre violento y caliente” os chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico” que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet.

O governo de Sebastian Piñera reagiu às manifestações impondo “estado de emergência” e “toque de recolher”, além de convocar o Exercito para enfrentar os manifestantes. Para Piñera, o Chile “estava em guerra contra inimigos poderosos”. O resultado de vários dias de confrontos entre forças militares e manifestantes foram mais de 20 mortos, milhares de feridos e centenas de detidos. Olhando o conjunto dos acontecimentos, sua magnitude, os atos violentos dos manifestantes, que chegaram a destruir 70% do Metrô de Santiago, e, a violenta repressão, pode-se dizer que não havia ocorrido nada similar em tempos de democracia e que as causas dessa explosão são realmente mais profundas.

Como no Brasil de 2013, a repressão fez com que os protestos se amplificassem até chegar à manifestação de 26 de outubro que reuniu mais de 1,2 milhão de pessoas no centro de Santiago. Foi um sinal eloquente de que a estratégia do governo havia naufragado. Piñera recuou, propôs algumas reformas paliativas, procedeu mudanças parciais em seu gabinete e, por fim, suspendeu o “estado de emergência”.

Mesmo assim, a tensão não se dissipou por completo. O mal-estar dos chilenos parece que vai demorar a passar e muitos falam de um “novo despertar” ou mesmo de uma “nova oportunidade” para alterar a vida da sociedade em seu conjunto. Há efetivamente um sentimento de esperança no ar, esperança de mudança, e uma confiança difusa de que o que se passou nesses dias foi efetivamente histórico.

Analistas e boa parte da opinião pública doméstica e internacional se surpreenderam com os acontecimentos chilenos. Afinal, o Chile está longe de ser um país desorganizado economicamente, vive anos de crescimento significativo e de melhoria de diversos índices que qualificam sua vida social. O Chile está integrado à globalização, o que o torna um dos países mais cosmopolitas do continente. Enfim, números favoráveis não lhe faltam, inclusive no que toca a renda per capita da região, na qual se sobressai com grande distância diante de outros países. Mas então que pasó?

Tanta surpresa talvez venha da crença de que o Chile sempre foi visto nas ciências sociais e no jornalismo, por chilenos e estrangeiros, como um país “modelar”, por seu pioneirismo ou por sua especificidade frente a outros países do continente. Foi assim que no passado se falou da “grande democracia” chilena durante a maior parte do século XX, enquanto os outros países latino-americanos viviam as desventuras do “populismo”.

Mais tarde foi possível ver que a democracia chilena não era tão inclusiva como se imaginava. O Chile aristocratizante sempre foi uma densa sombra sobre a democracia política que lhe dava fama. Foi apenas em 1958, depois de reformas eleitorais importantes, que o grau de participação aumentou. Entretanto, em pouco mais de 15 anos o golpe militar de 1973 colocaria por terra aquela experiência de ampliação da democracia chilena. Ela ruiria diante de uma polarização irredutível que castigaria o país por outros longos 15 anos.

Contrapondo-se à imagem da “grande democracia”, foi surpreendente notar que a ditadura de Pinochet encontrou um apoio significativo durante sua vigência. Surpreendeu porque a “refundação” da sociedade chilena, sustentada por um projeto econômico neoliberal, aparecia em combinação perfeita com a ditadura de Pinochet que, baseado em sua estrita autoridade, funcionou sem ordem constitucional até o plebiscito que daria ao país a Constituição de 1980, ainda vigente. Foi durante esse regime, quase dois anos depois do golpe, que começaram as privatizações da educação, da saúde e da previdência, acompanhadas por uma abertura integral da economia. O único setor que se manteve estatizado foi a exploração do cobre, principal riqueza do país. Nascia aí o “modelo chileno dos Chicago boys”, outra imagem modelar que iria perdurar no tempo, no país e fora dele.

Uma revisão desse período não tardou a ser feita. O período Pinochet não pode, em absoluto, ser visto como um momento tranquilo e feliz do país. Nele emergiram diversas crises sociais graves, em especial quando da implantação do novo modelo. Com ele vieram a quebra de empresas e o desemprego massivo. O que provocou imagens de desolação, com jovens “pateando pedras” pelas cidades mais importantes do país, algo imortalizado na canção da banda de rock Los Prisioneros, no início dos anos oitenta. Foi também o período do chamado “segundo exilio” chileno, um exilio econômico já que o primeiro havia sido político, nos meses e anos que se seguiram ao golpe de 1973.

A manutenção da estatização do cobre manchava a natureza do modelo que tinha como central o afastamento integral do Estado da vida econômica. A persistência da repressão política do regime comprometia, de alguma forma, sua fachada “liberal” perante o mundo. Para o sociólogo chileno Eugenio Tironi, o liberalismo realmente existente no Chile guardava a mesma relação de antagonismo com a liberdade que o socialismo estatizado da ex-URSS.

O fato é que o modelo neoliberal chileno deixava muitas zonas cinzentas e muitos silêncios para trás. A derrota de Pinochet no plebiscito de 1988 recolocaria as coisas em novos patamares. A partir da vitória da Concertación (uma coalizão de centro-esquerda) na primeira eleição presidencial pós-Pinochet, governos democratizadores se sucederiam por mais 20 anos.

Sem confrontar o modelo privatizador que havia sido implantado, a Concertación acabou por consagrar o modelo neoliberal. O êxito dos governos concertacionistas, com a integração do país à globalização, deu o suporte para uma nova etapa de sucesso relativo da economia, melhoras nos aspectos sociais, avanços na educação, na inovação e na competitividade do país. Contudo, o êxito econômico não alterou a sensação de que se vivia num “estado de mal-estar social”, com salários e pensões ao nível latino-americano e custos de bens e serviços ao nível dos europeus ou norte-americanos.

A notável modernização do país, atestada em números, como notável também é a sofisticação e até a luxuosidade das estações do Metrô de Santiago em bairros pobres – quase todas destruídas, total o parcialmente – compõem o cenário de um país dividido. Sinais materiais de modernização em contraposição às carências domesticas cotidianas, às expectativas de futuro dos jovens em situação de ameaça, com a recorrente elevação dos custos de educação, além do nível das pensões dos mais velhos frente ao que trabalharam e contribuíram durante toda a vida, tudo isso formou um “caldo de cultura” de raiva diante da flagrante desigualdade e de medo da regressão ao status quo anterior vivenciado nos anos de crise quando se implantou o modelo.

O Chile que explodiu nada mais expressa do que a reação a décadas de “estado de mal-estar social”. Os termos em que se deu tal explosão, com sua violência costumeira, agora triplicada, confirma o paradoxo de uma democracia ainda sustentada numa ordem politico-jurídica (a da Constituição de 1980) que carece de legitimidade. Os “modelos” que foram cultivados sobre o Chile em sua trajetória histórica estão agora todos em xeque e, nas ruas, o povo declara que quer vê-los superados. Ao que parece, não haverá volta atrás, a história voltou a pulsar no Chile e está aberta! (Revista Política Democrática On-line nº 13, p.32-35)

Alberto Aggio, historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista)

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