Se agisse como um colegiado, Supremo Tribunal Federal mitigaria vaidades
As onze capas heroicas da Gotham City brasileira entram novamente em cena nesta quinta-feira com farto holofote, mas escasso glamour. A fama que os ministros do Supremo Tribunal Federal adquiriram em 2012 a partir do julgamento da Ação Penal (AP) 470, do mensalão, foi carcomida ao longo dos anos e, em tempos do bolsonarismo/versão 2019, as metáforas de Batman deram lugar às ameaças de instalação de uma CPI da Lava-Toga. O plenário da Suprema Corte volta a analisar, enfim, três ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) – 43 e 44, 54 – para definir a legalidade do cumprimento de pena de prisão após uma condenação em segunda instância.
Como a futurologia na atual conjuntura é cada vez mais arriscada, torna-se inútil, aqui, prever o placar e suas implicações políticas, uma vez que foi claramente por razões políticas que o STF se esquivou de analisar o tema até agora. Chegamos a um ponto em que, se o vento soprar muito forte, qualquer coisa pode acontecer.
O que se espera de um Supremo Tribunal Federal é o básico, que fundamente suas decisões, e não que encontre soluções híbridas para esconder, sob jurisprudências de ocasião, a decisão política que provoca menos desgaste. E é justamente a ocasião que faz o ladrão, como diz o ditado tão repetido pelas nossas avós.
As evidentes ocasiões gestadas pelo Supremo se tornaram terreno fértil para reflexões sérias sobre esses onze personagens que, aqui, decidem rumos políticos da nação. Lançado no início deste mês, o livro “Decisões controversas do STF: direito constitucional em casos” é um exemplo de literatura que ganha fôlego diante de atitudes controvertidas de nossos juízes.
Reunindo análises e pesquisas de juristas brasileiros, o livro aponta “possíveis equívocos” do Supremo nos últimos 30 anos, desde a Constituição de 1988, mas faz críticas, como destaca o professor André Rufino do Vale, com base em parâmetros técnicos e científicos sobre determinadas decisões, “sejam elas colegiadas ou monocráticas”.
As reflexões tiram o Supremo do pedestal. O próprio Rufino destaca o lugar comum de que “Cortes possuem o exclusivo direito de errar por último”. Magistrado é um mortal que pode cometer alguma estupidez, como enfatiza o título de um outro livro, “Constitucional Stupidities, Constitucional Tragedies”, dos autores William Eskridge e Sanford Levinson, citados por Rufino na publicação brasileira. “Cortes Constitucionais cometem erros, muitos deles constatados tempos depois na evolução jurisprudencial e reconhecidos pelas próprias Cortes”, atesta Rufino, na primeira parte do livro. O professor analisa a “prática recorrente”, desde 2009, “de decisões monocráticas” que concedem medidas cautelares em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Os ministros alegam o congestionamento de pautas para tomar a decisão e não levar a ação ao plenário. Chega a ser constrangedor a “ilegalidade e inconstitucionalidade latente” do procedimento, como explica Rufino, uma vez que a lei não permite decisão individual em ADI. A sentença de um homem só pode suspender efeitos de uma emenda constitucional. O ex-presidente do STF Joaquim Barbosa tomou uma decisão em 18 de julho de 2013 que até julho de 2018 não tinha sido analisada pelo plenário, cita o acadêmico, só para exemplificar o risco da ação individual. Esse novo normal é uma transgressão, diz ele, onde deveria prevalecer o conceito de colegialidade.
“O aspecto mais saliente das práticas deliberativas de tribunais constitucionais diz respeito à noção que os magistrados cultivam em torno da colegialidade como uma exigência de imparcialidade e de impessoalidade do órgão judicial.” A noção de que existe, no STF, um corpo institucional unitário fortaleceria, em certa medida, essa impessoalidade, aumentaria a coesão, forçaria a construção de convicções. Essa noção de corpo não desconsidera, por óbvio, posturas individuais, caráter, personalidades, e a visão de mundo de cada um. Mas, se praticada, seria um importante filtro de vaidades: “A colegialidade, dessa forma, é contrária às posturas individualistas de magistrados e, portanto, pressupõe normas e procedimentos que inibam comportamentos que visem fazer sobressair sua figura ou seus atos individuais em relação ao grupo”.
Na parte do livro que aborda o equilíbrio constitucional dos Poderes, o professor João Paulo Bachur escrutina como decisões do STF contribuíram para “erodir as bases institucionais do presidencialismo de coalizão” e elevar a fragmentação partidária. O capítulo é recomendável aos parlamentares da centro-esquerda, como Tabata Amaral (PDT), que querem deixar as respectivas legendas, e aos seguidores do presidente Jair Bolsonaro, que prometem debandada em grupo do PSL. Quando os ministros derrubaram, em 2006, a cláusula de barreira estabelecida em 1995, criou-se uma rota de fuga, como pontua Bachur: se criado um novo partido, o parlamentar não perderia o mandato. “O resultado desses julgamentos, na prática, foi a escalada na criação de novos partidos, tendo como consequência uma fragmentação inédita no Poder Legislativo e consideráveis dificuldades para gerenciar a coalizão de governo”, assegura.
Bachur advoga que “no recente descaminho das instituições políticas nacionais, há espaço para uma crítica às decisões judiciais que alteraram a dinâmica política de nosso presidencialismo de coalizão, impactando consideravelmente sua capacidade decisória e a governabilidade”.
O Judiciário virou um fator de instabilidade que, tempos atrás, não entrava nas equações da política. O advogado Alberto Zacharias Toron escreve um capítulo sobre a “bananosa do foro por prerrogativa de função” e como um de nossos batmans afastou um presidente de outro Poder. O enredo do julgamento que começa hoje fornecerá material farto para análise racional, no futuro, sobre como o sistema político, com o condão do Judiciário, sempre encontra saídas para a sua própria sobrevivência. (Valor Econômico – 17/10/2019)
Malu Delgado é editora-assistente de Política – E-mail: maria.delgado@valor.com.br