Andrea Jubé: O jogador

Mequinho que se cuide porque o presidente Jair Bolsonaro aventurou-se na arte do tabuleiro. Mais de uma vez, ele comparou o governo a uma partida de xadrez, o jogo milenar de estratégia que surgiu na Índia e dialoga com o que lhe é caro. Em sânscrito, o nome do jogo significa “os quatro elementos de um exército”: a infantaria (peões), a cavalaria, as carroças (torres) e os elefantes (bispos).

Autoproclamado Rei, Bolsonaro convocou autoridades para o seu time e distribuiu-as no tabuleiro. O que está em xeque na política brasileira é a relação do governo com o Congresso.

O Planalto aguarda o desfecho da reforma da Previdência que o Senado calculadamente tarda em concluir. Monitora o desdobramento da reforma tributária, que fatiada em três – a dos deputados, a dos senadores e a promessa do ministro Paulo Guedes – avançará aos solavancos.

E observa Câmara e Senado, convulsionados pela partilha dos recursos da cessão onerosa e pela disputa de protagonismo entre Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. “Há vários dias acontecem fatos que põem em xeque a relação harmônica entre os poderes que fazem o Legislativo”, reconheceu o líder do PP, Arthur Lira (AL), após o entrevero com o senador Cid Gomes (PDT-CE).

É como se o Rei encarnado por Bolsonaro vivesse em xeque permanente. A metáfora do jogo de xadrez surgiu dois dias antes do anúncio do nome de Augusto Aras para o comando da Procuradoria Geral da República. Um mês depois ele retomou a comparação, na posse de Aras. “Se fosse um jogo de xadrez, o Aras seria a Rainha, eu o Rei”, definiu, entre risos e aplausos dos presentes.

“O Rodrigo Maia seria uma Torre, e a outra Torre o Alcolumbre. O Cavalo, no bom sentido, o Dias Toffoli. Meus ministros os peões”, prosseguiu.

Bolsonaro parece entender a dinâmica do jogo, mas erra na escalação do time. A Rainha, por controlar o maior número de casas, é a principal atacante do Rei. Mas Bolsonaro não poderia escalar o titular da PGR para o ataque sob pena de sofrer gol contra.

Recorde-se que o então procurador-geral Rodrigo Janot – agora protagonista de um dos maiores escândalos da República – ofereceu não uma, mas duas denúncias contra o então presidente Michel Temer.

E ao menos em teoria, o procurador-geral da República goza de autonomia e independência institucionais. Uma prerrogativa que não intimidou o presidente a cobrar publicamente de Aras que seja alertado previamente das investigações: “por muitas vezes, se nós estivermos num caminho não muito certo, que muitas vezes estamos fazendo aquilo bem intencionados, nos procurem para que possamos corrigir”.

Escalar o presidente do STF como Cavalo é manobra arriscada ou ingênua. O Cavalo é peça que pode ser decisiva nos jogos fechados no centro do tabuleiro. Num erro tático, o Cavalo pela sua posição pode cercear a rota de fuga do Rei. A caneta de Toffoli e de seus pares do STF tem tinta para limitar ou ampliar os passos de todas autoridades com foro: inclusive do filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), beneficiado com recurso àquela Corte.

Apesar de todo o esforço de aproximação institucional, é quiçá perigoso ter Maia e Alcolumbre no papel das Torres. Essas peças são atacantes velozes porque se deslocam pelo maior número de casas na horizontal e na vertical. Maia e Alcolumbre comportam-se, todavia, ora como aliados ora adversários.

Os gestos de aproximação se acentuaram depois que o Planalto ampliou os espaços do DEM no governo, sigla de Maia e Alcolumbre. O partido que já controla três ministérios (Casa Civil, Saúde e Agricultura), ganhou postos estratégicos no segundo escalão: a presidência do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), tática na interface com prefeitos, em indicação atribuída a Maia; a Secretaria Nacional da Receita Federal, em indicação atribuída a Alcolumbre; a presidência da Companhia de Desenvolvimento do São Francisco (Codevasf), em indicação atribuída ao líder da bancada, deputado Elmar Nascimento (BA).

É em meio ao latifúndio do DEM no governo que Rodrigo Maia declarou há três que Bolsonaro, que no início optara pelo confronto, agora estaria “conciliador”.

Mas o Congresso não se resume ao DEM ou ao PSD – partido que tenta ampliar as pontes com o governo – e os parlamentares estão indóceis. “O governo quer casamento com vida de solteiro. Não pode cobrar fidelidade distribuindo cargos de segundo escalão”, observa um líder de bancada.

Segundo esta liderança, o acordo de procedimentos dos partidos de Centro com o governo restringiu-se à reforma da Previdência.

Na última semana, a indefinição da partilha dos recursos da cessão onerosa foi o estopim para a explosão de nervos. As duas Casas concordam com o modelo de divisão dos recursos por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Mas um grupo de deputados quer vincular a destinação dos recursos a obras de saneamento e infraestrutura. O receio é encher os cofres dos adversários regionais nas eleições municipais.

Ante o impasse que impediu a votação de seu relatório na Câmara, o relator da matéria no Senado, Cid Gomes, xingou Arthur Lira de “achacador”. Lira devolveu: “não sei o que ele tem na cabeça, mas não são neurônios, nem qualquer eletrodo que faça com que o cérebro dele funcione. Ele é irresponsável, é leviano, é vil, é pequeno, e não merece estar naquela cadeira [de senador], que é muito maior do que as nádegas dele”, vociferou.

O embate desses dois expoentes do parlamento reflete a tensão entre as duas Casas. Um deputado da oposição diz que o Senado quer posar de “bonzinho” com a população. Manteve o valor atual do abono salarial, que os deputados haviam reduzido a pedido do governo. E retarda a votação do segundo turno beneficiando aqueles que podem apressar os processos de aposentadoria. Com o tabuleiro em desordem, melhor Bolsonaro escalar outro time para defender o Rei. Senão o jogo pode acabar em xeque-mate. (Valor Econômico – 08/10/2019)

Andrea Jubé é repórter de Política em Brasília – E-mail: andrea.jube@valor.com.br

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