O BC brasileiro foi pioneiro na compreensão do impacto ambiental de suas ações junto ao mercado financeiro
Deveriam os bancos centrais incluir questões como o meio ambiente e mudanças climáticas no escopo de seus mandatos? Há 15 anos, ninguém em sã consciência pensaria em fazer essa pergunta. Afinal, antes da crise financeira de 2008 – que completa 11 anos essa semana – os objetivos e instrumentos dos bancos centrais estavam muito bem definidos. Salvo poucas exceções, o objetivo principal era a estabilidade de preços e o instrumento para alcançá-la a sintonia fina das taxas de juros de curto prazo. Com a crise, entretanto, surgiram outras preocupações além da estabilidade dos preços, como a estabilidade financeira. Surgiram, também, outros instrumentos. As operações conhecidas como afrouxamento quantitativo, ou a compra direta de títulos de longo prazo pelos bancos centrais após os juros terem caído para zero. Mais recentemente, o uso das taxas de juros negativas para prover estímulos adicionais, conforme as iniciativas do Banco do Japão e do Banco Central Europeu, entre outros.
As enormes mudanças na condução da política monetária provocadas pela crise financeira de 2008 e os questionamentos sobre o papel dos bancos centrais continuam a ter destaque no debate global. As mais novas áreas do debate incluem o impacto das ações de política monetária na distribuição de renda e se as autoridades monetárias podem, de alguma forma, serem usadas para combater as mudanças climáticas. Há quem veja nessa discussão investidas políticas contra a autonomia dos bancos centrais, o que sem dúvida alguma seria prejudicial para os principais objetivos da política monetária, como o controle inflacionário. Contudo, dada a urgência desses temas, não é irrazoável que eles sejam trazidos para o âmbito das políticas macroeconômicas. A desigualdade de renda, por exemplo, guarda relações estreitas com o nacionalismo econômico ressurgente no mundo, conforme pesquisas que eu e outros temos realizado. O nacionalismo econômico, atrelado ao discurso populista extremista, pode ser bastante prejudicial para a organização macroeconômica e para a estabilidade política – a conscientização generalizada de que uma não existe sem a outra tem sido um dos poucos legados positivos desses tempos de transição global.
Do mesmo modo, a agenda ambiental não pode continuar isolada da agenda econômica mais ampla. Uma possível grande contribuição que os bancos centrais podem fornecer passa por uma compreensão mais profunda a respeito da dinâmica dos impactos ambientais a partir de suas interações com o sistema financeiro. Entre 2016 e 2018, o Banco da Inglaterra e o BCE compraram títulos corporativos como parte do afrouxamento quantitativo – as compras foram proporcionais à composição do mercado e tinham por objetivo reduzir as taxas de juros de longo prazo para impulsionar a demanda, e trazer a inflação para a meta estabelecida. Para manter a neutralidade em relação à composição dos títulos no mercado, os bancos centrais acabaram comprando papéis de empresas mais intensivas no uso de carbono, como revelaram alguns estudos (Matikainen et al. (2017)). Há espaço, portanto, para repensar as compras de títulos: e se os bancos centrais passarem a comprar relativamente mais títulos de empresas com selo ambiental, ignorando a neutralidade da composição do mercado? Essa é certamente uma pergunta que merece a atenção cuidadosa dos departamentos de pesquisa dos BCs.
Curiosamente, o Banco Central brasileiro foi pioneiro na compreensão do impacto ambiental de suas ações junto ao mercado financeiro. Em 2008, o BC e o Conselho Monetário Nacional promulgaram a Resolução no. 3545, cujo objetivo era condicionar o crédito rural subsidiado ao cumprimento de normas ambientais. A medida teve grande sucesso em impedir o desmatamento em várias partes da Amazônia Legal, conforme mostrou o estudo da Climate Policy Initiative da PUC-Rio de autoria de Juliano Assunção e coautores em 2013 – esse estudo será brevemente publicado em uma revista científica de grande prestígio internacional.
O debate sobre a atuação dos bancos centrais para combater as mudanças climáticas está ganhando tração internacional entre acadêmicos e gestores de política econômica. O Brasil tem uma experiência pioneira nessa área, e espaço de sobra para exibi-la no momento em que a Amazônia está no centro das atenções. Será mesmo que vamos insistir em perder a oportunidade de tratar do tema com as evidências científicas que merece em vez de abordá-lo com barbaridades ideológicas? (O Estado de S. Paulo – 18/09/2019)
MONICA DE BOLLE, ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY