Quem identificou a origem dos ataques foi o decano do Supremo Tribunal Federal (STF) ministro Celso de Mello, quando falou, a propósito da censura de uma revista em quadrinhos para adolescentes, que a inspiração para atos obscurantistas “resulta das trevas que dominam o poder do Estado”.
A partir dessa constatação, têm-se diante das instituições do Estado brasileiro a tarefa de enfrentar um Executivo que não aceita limites.
O Legislativo, se cumpre com galhardia a missão de enfrentar as reformas necessárias, sendo o protagonista da mudança do Estado, não deveria se sentir liberado para legislar em causa própria.
O STF, que, no momento conturbado que o país vive tem o papel de poder moderador entre Legislativo e Executivo, e é buscado como solucionador de questões políticas e sociais, não pode comprometer seu legado democrático a pretexto de se defender de ataques.
O pacto anunciado pelos presidentes dos Poderes da República, nascido para, segundo revelou o ministro Dias Toffoli, desmontar um incipiente movimento contra o presidente Bolsonaro no início do governo, não pode se revelar apenas instrumento de um acórdão político.
É importante impedir a percepção de que os Poderes estão se auxiliando mutuamente, em busca de um modelo de governo que deixe seus integrantes numa zona de conforto. Por isso é necessário que o STF retome seu papel de guardião da democracia.
Sem citar nomes, mas voltando a pontuar sua indignação, o decano Celso de Mello fez defesa enfática do papel do Ministério Público, que “não serve a governos, a pessoas, não se subordina a partidos políticos e não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem”.
Uma clara mensagem sobre a tentativa de aparelhamento do Ministério Público com a escolha do subprocurador Augusto Aras para Procurador-Geral da República. Aras vem tocando em pontos que soam como música a grande parte dos parlamentares: a Lava-Jato se excedeu, não pode estar sujeita ao personalismo.
Tendo sido identificado como o candidato que mais se enquadrou no perfil desejado pelo presidente, um Procurador-Geral que seja flexível na questão ambiental, ajudando o Brasil sem atrapalhar obras de infra-estrutura, e se identifique com os valores morais defendidos pelo Governo, Augusto Aras assume com a percepção de que será um Procurador-Geral dócil ao Executivo.
A tal ponto esse sentimento está disseminado que o próprio Aras se sentiu na necessidade de comentar com políticos que avisou a Bolsonaro que ele não poderá se intrometer a toda hora.
Foi a advertência do decano do STF: “O Ministério Público não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, ou instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, quaisquer que elas sejam, sob pena de o Ministério Público se mostrar infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é, segundo o que diz a própria Constituição Federal, a de defender a plenitude do regime democrático”.
A defesa da democracia também foi o tom da despedida de Raquel Dodge. Ela pediu aos ministros do Supremo, às instituições da República e à sociedade civil que “permaneçam atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal”.
Dodge citou o sistema de freios e contrapesos “(…) para proteger o direito e a segurança para todos, para defender minorias”, que depende da atuação do Ministério Público.
Os retrocessos democráticos que estão ocorrendo em diversos níveis do governo brasileiro são preocupantes, na medida em que se avança sobre as liberdades civis, conspira-se contra o combate à corrupção, aparelha-se à direita o que antes era aparelhado à esquerda. (O Globo – 13/09/2019)