Trump e Bolsonaro são fenômenos novos, mas suas sociedades podem torná-los passageiros
As pesquisas sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro mostram claramente que o nível de expectativa em torno de um presidente é mais alto do que se supõe.
Bolsonaro não acredita em pesquisas. Ele acha que sabe o caminho, não se importa muito com o que acontece na realidade. Navega com otimismo sobre a economia com base, sobretudo, na reforma da Previdência. Ignora, talvez, que seus frutos demoram. E que o momento é muito delicado.
Lendo a história da renúncia de James Mattis, secretário da Defesa de Donald Trump, sinto que é possível estabelecer um paralelo com a figura de Bolsonaro. Mattis é um general da Marinha, o mais respeitado dos Estados Unidos. Discordava de Trump e de sua política de afastamento de alianças tradicionais.
Trump disse que Mattis estava parecendo democrata e que entendia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) mais do que seu secretário da Defesa. Acontece que Mattis já foi o chefe supremo das forças da Otan.
Mattis teria dito a amigos que Trump tem dificuldades cognitivas. Mas talvez uma causa dessa dificuldade seja exatamente supor que saiba o que não estudou, não ouviu.
Para Mattis, o modelo é George Washington, para quem era necessário ouvir, aprender, ajudar e, depois, liderar. Na verdade, esse modelo de certa forma prevalece até a ascensão de líderes populistas. Hoje está em frangalhos, tanto aqui como nos EUA.
Bolsonaro anunciou que pretende anistiar os autores dos massacres do Carandiru e de Carajás. Vai se chocar com a lei. É um ato simbólico, pois há poucos presos.
No entanto, isso vai afundar mais a imagem do Brasil no exterior. Não porque as pessoas sejam defensoras ardorosas de direitos humanos, ou mesmo de esquerda ou de direita. É porque um marco civilizatório é rompido, entramos na fronteira da barbárie.
Segurança jurídica não significa licença para matar. De que adiantam a lei e o júri, se o presidente anistia?
Bolsonaro não vai mudar. Tenho lido notas em que ministros dizem que ele é assim mesmo, uma pessoa que diz o que pensa. Alguns afirmam que a economia está deslanchando e frases ditas aqui e ali não têm importância. Ignoram o peso dessas frases na própria economia. E seguem no barco.
Mattis percebeu que era impossível manter a política de alianças dos Estados Unidos e simplesmente caiu fora. Não queria legitimar uma política que, apesar das aparências, enfraquecia o seu país.
Aqui, o governo marcha coeso para o isolamento. E escolheu, agora, a Amazônia como tema e a Igreja Católica como adversária.
O sínodo sobre a Amazônia traria como grande novidade a permissão para que padres casados atuassem na região. Mas o governo quer manter o foco em sua política ambiental, neste momento em que as chamas consomem parte da floresta.
A tese da ameaça à soberania pressupõe que a Europa não acredita no aquecimento global e viria explorar os recursos minerais da Região Amazônica. São bilhões de euros investidos numa economia de baixo carbono, dificilmente seu projeto estratégico seria liberar carbono na Amazônia. Seria execrado pelos eleitores.
Verdade é que Emmanuel Macron, presidente da França, em certo momento autorizou a exploração de ouro na Guiana Francesa, mas recuou diante da resistência local.
A formulação brasileira sobre o desenvolvimento da Amazônia prevê que seja sustentável e inclusivo. Isso poderia perfeitamente ser feito com a cooperação internacional, sem perda de soberania.
No momento, fala-se em mineração, avanço sobre as terras indígenas. E o fogo das queimadas revela também o efeito de um intenso desmatamento.
O Brasil é soberano para adotar uma política de devastação da Amazônia. Mas haverá consequências, internas e externas. Não me parece razoável que os defensores de outro modelo sejam considerados adversários da soberania nacional.
Vamos enfrentar a realidade. Não se questiona a soberania, mas precisamente o que o governo está fazendo dela, como a exerce na prática. Trata-se de um processo difícil, porque a tese da soberania desconfia de pesquisadores, cientistas, e os remete para o outro lado da trincheira.
Voltamos à questão da dificuldade cognitiva na sua plenitude. É uma soberania que dispensa o conhecimento como uma das suas ferramentas. Ela se exerce na doutrina.
O mundo mudou e é impressionante como o exercício mais comum no debate amazônico é apontar interesses ocultos dos atores. A Amazônia tem mesmo sua importância para o mundo numa era em que se expandiu a preocupação ambiental – mas tudo isso fica em segundo plano. Se o Brasil levasse em conta essa realidade como um dos pontos centrais de sua posição no mundo, as coisas seriam bem melhores.
Mas não são.
O fato positivo é que as pessoas percebem, por diversas razões, que não estamos num bom caminho. Esse dado valida a tese de que é importante sempre apontar os erros sem buscar conflitos, pois é exatamente esse o estilo que favorece tanto Trump como Bolsonaro. E, enfim, acreditar na inteligência popular e no seu aprendizado, na possibilidade de as maiorias mais tolerantes retomarem as rédeas do País.
Há conservadores que dizem que a política é a arte de confortar as pessoas diante da desolação do real. O estilo de Trump e de Bolsonaro vai na direção oposta: tornar o real insuportável. São fenômenos novos, mas que as duas sociedades têm condições de tornar passageiros.
Aliás, para dizer a verdade, esta é uma frase que tenho ouvido com frequência, sobretudo entre pesquisadores e cientistas que sabem o valor do conhecimento: “Isso passa”.
E nem sempre essa frase conota resignação. Ao contrário, anima. (O Estado de S. Paulo – 06/09/2019)
FERNANDO GABEIRA, JORNALISTA