Os detalhem variam dependendo de quem conta a história, mas o importante mesmo é a lição. Dizem que, ainda no exílio em Madri, Juan Domingo Perón foi questionado em uma conversa com jornalistas sobre as preferências do eleitorado argentino. E começou a explicar: há uns 30% de liberais, talvez 30% de conservadores, mais 30% de socialistas ou comunistas. Aí viram que ainda faltava incluir o grupo mais dinâmico e a conta não fecharia. “General, e os peronistas?”, perguntou um dos repórteres. Mais em tom de didatismo do que de gracejo, o líder populista respondeu: “Ah, sim, peronistas somos todos”.
Essa é a parte verdadeira sobre as eleições de outubro na Argentina. O favoritíssimo Alberto Fernández encarna uma espécie de peronismo-raiz, tendo Cristina Kirchner como vice. O presidente Mauricio Macri se via destinado a expurgar o fantasma de Perón da Casa Rosada quando ganhou em 2015 e acabou recorrendo a um moderado senador peronista como companheiro de chapa em sua tentativa de reeleição. Roberto Lavagna, o ex-ministro que tirou a economia do atoleiro no início da década passada, apresentou-se como terceira via e representante do… “peronismo dissidente”!
A parte histriônica, mas sem amparo na realidade, é a de que o retorno do kirchnerismo transformará a Argentina em uma nova Venezuela. Ernesto Araújo comparou Fernández a uma matrioska, uma boneca russa, que “você abre e está Cristina Kirchner, abre [de novo] e está Lula, depois Chávez”. Seu chefe não quer “irmãos argentinos fugindo para cá” e alertou que o Rio Grande do Sul pode ficar igualzinho a Roraima se “essa esquerdalha” vencer. Noves fora os milhares de jovens brasileiros que cruzam a fronteira todos os anos para estudar medicina no país vizinho, onde universidade é direito sagrado, há muita torcida política e pouca construção de pontes com o provável futuro presidente nas declarações de Jair Bolsonaro.
Alberto Fernández não é Nicolás Maduro. E a Argentina não é uma Venezuela. A começar pelo óbvio: tudo indica que ele será o vencedor em eleições justas e livres, sem coação de qualquer natureza, com independência entre os poderes, uma imprensa vibrante, terá oposição ativa.
Não há motivos para festejar a arrasadora vitória de Fernández nas primárias, como fez Dilma Rousseff no Twitter, vendo no resultado “enorme alento” para a democracia na América Latina e um “triunfo animador das forças progressistas sobre o neoliberalismo”. Menos, Dilma.
Cristina Kirchner governou por oito anos (mais quatro de seu marido Néstor) e entregou um país em recessão, com escalada inflacionária, protecionismo exacerbado, mercado paralelo que fazia Buenos Aires reviver as práticas cambiais dos anos 1980.
Um séquito de assessores kirchneristas caiu em esquemas de corrupção, a própria Cristina está encrencada na Justiça, um promotor que a investigava foi encontrado morto em Puerto Madero no dia de apresentar suas conclusões ao Congresso. Seu secretário de Comércio mandava redes de supermercados congelar preços e recebia empresários no gabinete com um revólver à mesa. É sempre bom lembrar como era.
Só fica difícil argumentar pela reeleição de Macri. De príncipe dos mercados a patrocinador de um default, ele conseguiu piorar quase todos os indicadores sociais e econômicos em quatro anos. A variação acumulada do PIB em seu mandato é negativa, o nível de pobreza disparou e até a taxa de inflação – um triunfo habitual dos economistas ortodoxos – ficou mais alta.
Muitos culpam o excesso de “gradualismo” no ajuste e nas reformas pelo fracasso de Macri. “Se tivéssemos sido mais duros logo de cara, não teríamos ficado nem cinco meses aqui”, me disse Fulvio Pompeo, secretário de Assuntos Estratégicos e homem de confiança do presidente, em seu gabinete na Casa Rosada no ano passado, após uma rodada de pânico nos mercados com o peso e o anúncio de acordo com o FMI.
O aperto fiscal desde então cobra um preço nas urnas, mas a resposta de Macri nas últimas semanas – congelamento de preços, moratória parcial, controle de capitais – desanimou seu público mais fiel: o empresariado. “Ele podia perder as eleições por 15 pontos e sair pela porta da frente, mas preferiu ceder ao populismo e sair pela porta dos fundos”, diz um investidor sul-americano com forte presença em Buenos Aires.
Esse mesmo empresário, com algumas centenas de milhões de dólares investidos na Argentina, tem as seguintes convicções: é exagero encarar Fernández como um professor fora de série, mas ele é estudioso e coerente, tem perfil conciliador, falta-lhe mais tato político, mas não aceitará ser um marionete de Cristina. Está muito mais para Lenín Moreno, que rompeu com seu padrinho Rafael Correa no Equador, ou para Juan Manuel Santos, que fugiu das garras de Álvaro Uribe na Colômbia.
É apenas uma aposta. Certo mesmo é que a Argentina tem uma estrutura produtiva mais diversificada e organizada do que a Venezuela, país de vocação rentista, onde o Estado sempre se apropriou da renda do petróleo para beneficiar seus apoiadores – a diferença entre o chavismo e os participantes do Pacto de Punto Fijo está mais em quem recebe essa renda, e não no modelo em si.
As instituições na Bacia do Rio da Prata podem ser falhas, mas funcionam melhor do que no Caribe. Quando o governo de Cristina inventou uma Lei da Mídia e cortou a publicidade estatal para quebrar o Grupo Clarín, a Suprema Corte agiu. O secretário de Comércio tanto mostrou a arma para empresários que foi defenestrado. A Repsol ficou enfurecida ao ter a YPF expropriada, mas mudou de humor quando viu os dólares da indenização que lhe foi paga.
No auge da ofensiva de Cristina contra os ruralistas, Fernández se afastou do kirchnerismo. O déficit fiscal elevado não lhe permitiria abrir a torneira de gastos públicos e seguir a clássica cartilha populista. O acordo com a União Europeia é um antídoto contra o protecionismo comercial. E, acima de tudo, há a questão dos direitos humanos: enquanto na Venezuela se dissemina a política do porrete, o trauma da ditadura sangrenta mantém a sociedade argentina em estado de vigilância.
“São todos do Foro de São Paulo!”, acusaria, em um golpe final, o conservador aguerrido. Mas aí se recomenda a leitura de Guilherme Casarões, um jovem e brilhante professor de relações internacionais na FGV-SP, que ensina: Lula e Chávez tinham afinidade pessoal, boa química, excelente diálogo. Mas eram muito mais competidores por liderança e protagonismo, cada um a seu modo, do que aliados em torno de uma Ursal ou algo assim. Assunto para outra coluna. (Valor Econômico – 03/09/2019)
Daniel Rittner é repórter especial – E-mail: daniel.rittner@valor.com.br