Cristovam Buarque: Difícil unidade propositiva

Nos últimos dois meses, ministros dos governos democráticos-progressistas, de Itamar a Temer, passando por Fernando Henrique, Lula e Dilma, têm se reunido para manifestar descontentamento com as políticas do governo de Jair Bolsonaro. Com seus manifestos, esses ministros, do período de 1992 a 2018, estão corretos ao alertar o Brasil sobre os riscos que corremos na educação, no meio ambiente, saúde, ciência e tecnologia.

Mas dificilmente eles se uniriam em propostas comuns para o futuro. A unidade é limitada à contestação do que temos hoje, não é a favor do que propomos para o futuro. Passamos 26 anos no poder discordando entre nós sobre o que o governo do momento propunha, agora nos aliamos contra o governo do momento. Isso confirma antiga regra pela qual os democratas e progressistas só se unem na oposição.

Nada indica que teremos uma aliança duradoura por um Brasil diferente daquele que prevemos para o futuro. Tudo leva a crer que os “erros” grosseiros do radicalismo do atual presidente consolidam seu bloco fiel, levando-o ao segundo turno; da mesma forma que a radicalização nostálgica do PT parece consolidar sua ida ao segundo turno.

Tudo indica que, em 2022, o presidente Bolsonaro deve ser candidato, respeitando as regras constitucionais; por isso, muito provavelmente, os ex-ministros que hoje se unem contra seu governo estarão divididos, cada um com seu candidato, como foi em 2018, e ele deve ir ao segundo turno junto com o candidato do PT, com a história repetindo-se graças à divisão das outras forças.

O espaço entre os extremos é dividido em pequenos nichos eleitorais, cada um com seu candidato, até porque é para isso que existem dois turnos; no primeiro votamos no mais próximo, no segundo, no menos distante, ou em nenhum, que é outra forma de votar em um dos dois, sem ter que escolher qual. A unidade afirmativa de um bloco democrático-progressista parece impossível nestes tempos de posições sectarizadas.

Nos governos dos partidos desses ex-ministros, eles preferiram alianças com grupos antagônicos a se aliar a legendas próximas, cada qual dono de sua verdade e de sua voracidade pelo poder, em vez de formar um pacto de governabilidade entre eles.

Em 2015, um grupo de senadores de diversos partidos foi recebido pela presidente Dilma e tentou a construção de uma unidade democrática progressista para tirar o Brasil da crise em que seu governo havia jogado o país, por causa da irresponsabilidade fiscal das pedaladas. Ela preferiu seguir sozinha com seu partido. O resultado foi o aprofundamento da crise e o seu impeachment.

Em agosto de 2018, outro grupo de parlamentares sugeriu que os candidatos a presidente se aliassem para evitar o segundo turno entre dois extremos. Mas foram repudiados, cada um dos candidatos dizendo que a proposta visava eliminá- lo de uma eleição que considerava ganha. Apenas um deles chegou a dois dígitos, quase todos tiveram menos de 5% dos votos. Isso pode se repetir em 2022.

Apesar dos manifestos oposicionistas de ex-ministros, e até de rumores sobre uma aliança alternativa, o tema já começa errado ao excluir o PT como um dos atores, além de se apresentar como oposição e não como proposta alternativa a Bolsonaro. Nada indica que os líderes que podem ser chamados de democratas-progressistas terão a clarividência para elaborar um programa comum e abrirem mão de suas candidaturas em favor de outra, ou alguma candidatura que os unifique.

Ainda é cedo para dizer o que vai acontecer até 2022, mas faltam apenas dois anos para que as chapas estejam formadas e os nomes, lançados; e nada indica um esforço sério por uma unidade ampla e propositiva. A observação dos nossos líderes nos faz imaginar que Bolsonaro e Haddad, ou outro do PT que Lula escolher, se não ele próprio, serão os dois nomes que estarão à disposição na urna para o eleitor escolher quem vai governar o Brasil nos primeiros anos de nosso terceiro centenário.

Qualquer um que vencer não parece interessado ou ter condições de unificar as forças democráticas e progressistas por um programa alternativo. Os ex-ministros, que têm se reunido para manifestar correta oposição aos desastres atuais, prestariam um grande serviço se fossem além da crítica ao presente e tentassem fechar programas setoriais que unificassem essas forças com propostas para o futuro. Porque precisamos insistir com esperança de que é possível caminhar para uma unidade propositiva por um novo Brasil com coesão e rumo. (Cristovam Buarque – 10/09/2019)

Cristovam Buarque, ex-senador do Cidadania-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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