Um Mahatma Ghandi vermelho

Em meados da década de 80, quando eu tive a honra de frequentar a sede do Comitê Central do PCB, no Rio de Janeiro, me deparava quase que diariamente com a figura de Dinarco Reis. O legendário revolucionário já estava então bem avançado nos anos e o que mais me impressionava nele, na verdade, era a calma quase infinita com que se dirigia às pessoas.

Ele era uma espécie de Mahatma Ghandi vermelho, tamanha a sua doçura e determinação. Quem o visse assim, tão quieto, debruçado sobre os livros e alfarrábios em sua discreta mesa de trabalho, remexendo volta e meia em seus velhos óculos, e sorrindo com certa timidez, quem o visse assim, repito, jamais poderia imaginar que aquele homem lutara todos os combates possíveis em nome da democracia. No Brasil e em várias partes do mundo.

Senão, vejamos. Dinarco participara da Insurreição Aliancista de 1935, no Brasil. E, logo depois, da Guerra Civil Espanhola. Na França, terra de Robespierre e Louis Aragon, Dinarco se envolvera com a Resistência, capitaneada pelos militantes comunistas e, também, pelos partidários do general patriota Charles De Gaulle. Mais: segundo me confidenciou o saudoso amigo Aristélio de Andrade, o bravo revolucionário chegara a lutar ao lado das tropas de Josip Tito, contribuindo para libertar a Iugoslávia da bota nazista. De cortar o fôlego, realmente.

Operário eletricista desde os 14 anos de idade, posteriormente militar, Dinarco Reis pertencia a uma geração que sonhou em mudar o mundo. Que ousou pensar que as sociedades humanas poderiam ser diferentes do que eram. Ou seja, que elas se tornariam mais justas, fraternas e libertárias. Ele fez de sua sensibilidade humana um projeto de vida, dedicando toda sua trajetória ao ideal socialista – e isso nos comove ainda hoje.

Passou grande parte de sua existência nas prisões, na clandestinidade ou no exílio, enfrentando ditaduras terríveis, como a de Getúlio Vargas, ou a de Francisco Franco (na Espanha), ou ainda a barbárie hitlerista (na Alemanha), para não aludir às ditaduras de Eurico Gaspar Dutra e dos generais-presidentes de 64. E nunca se dobrou. Pelo contrário: venceu todos os combates que travou. Aderiu ao Partido Comunista Brasileiro em 1933 e nele permaneceu até falecer, em 1989.

Para Dinarco, a única coisa que estava acima da própria vida – tenho essa certeza comigo – era a liberdade humana. Por isso, eu comparo sua ação com aquela dos Inconfidentes. Pois os comunistas foram os Inconfidentes do Século XX. Militantes como Giocondo Dias, Luiz Carlos Prestes, Armênio Guedes, Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Marighella, Astrojildo Pereira, Nelson Pereira dos Santos, Modesto da Silveira, Francisco Inácio de Almeida, Salomão Malina, Zuleika Alambert, Raimundo Dalmasso, o Dedé, Antonio Ribeiro Granja, Adalberto Timóteo da Silva, Marcos Jaimovich, Agliberto Vieira de Azevedo, Wellington Mangueira, Abigail Páscoa, Alberto Passos Guimarães, Nelson Werneck Sodré, Milton Coelho da Graça, Ferreira Gullar, Gregório Bezerra, Moacyr Longo, Sérgio Augusto de Moraes, Oscar Niemeyer, Hilário Pinha e o próprio Dinarco Reis representam, a meus olhos, aquilo que o Brasil produziu de melhor, nas últimas décadas, em matéria de dignidade e honradez.

O nosso humanismo muito deve à ação e ao pensamento desses revolucionários exemplares, sem dúvida. Não quero dizer com isso, evidentemente, que os comunistas detivessem o monopólio da seriedade. Eu admirava igualmente – e não me canso de admirar sempre – católicos engajados como Alceu Amoroso Lima, Hélio Silva, Sobral Pinto, Marcos de Castro e o Padre Hélder Câmara, entre tantos outros.

O que dizer ainda? Que tenho saudades de Dinarco Reis. Das conversas que com ele mantive no CC do PCB, em uma época onde pontificavam por ali Giocondo, Malina, Almeida, Marcos Jaimovitch, Sergio Augusto de Moraes, Luiz Carlos Azedo, Hércules Corrêa, Paulo Elisiário, Geraldo Rodrigues dos Santos, José Raimundo da Silva, Almir Neves, Régis Fratti, Givaldo Siqueira e Ivan Alves, meu querido pai. Um ambiente bom e sadio, onde era proibido evitar de sonhar. Quem ali entrasse, naquela sede mítica dos dirigentes comunistas, o fazia, creio eu, com a condição de deixar a tristeza lá fora.

Ou pelo menos tentávamos, pois era preciso manter acesa a velha chama da rebelião e da esperança. E eu não posso me esquecer do comentário que a minha querida Aparecida Azedo me fez, logo após a morte de meu pai, precisamente a 2 de setembro de 1989: “O Dinarco está muito abalado com o falecimento do Ivan”. Uma semana depois, Dinarco Reis falecia.

Mas, retomando o fio da meada, de onde vinha mesmo essa calma quase exasperante de Dinarco Reis? Certamente da inteireza de suas convicções. De alguém que não vacilara em apoiar a Declaração de Março de 1958, a partir da qual o Partido se dispunha a superar o capitalismo, tomando por base o terreno da democracia. Do homem que, logo após o Golpe político-militar de 1964, entendera que aquele novo regime só poderia ser derrotado por uma ampla política de massas – e não derrubado por uma rebelião armada. Apesar de formado nos embates militares, Dinarco não se deixou levar, contudo, por ilusões guerrilheiras ou foquistas. Se a coragem não lhe faltava, a lucidez muito menos. E é essa lucidez apontada por dirigentes como Dinarco Reis que nos inspira pela vida afora na luta pela transformação da sociedade e dos próprios seres humanos.

Pois a paciência, como a doçura e a verdade, é sempre revolucionária.

Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de livros, o último dos quais é Presença Negra no Brasil

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