O Globo
País vive mais longo ciclo de aumento da desigualdade
Aliados pró e contra projeto que pune abuso pressionam Bolsonaro
Caixa vai usar IPCA para corrigir o financiamento
Presidente suspende uso de todo tipo de radar móvel
Egípicio desafia FBI a provar acusação
Argentina poderá rever acordos com FMI e UE
O Estado de S. Paulo
Situação das contas da Oi piora e Anatel estuda intervenção
Bolsonaro sofre pressão para vetos em lei sobre abuso
Presidente suspende uso de radar móvel em estradas
Planos de saúde ‘falsos coletivos’ crescem 58%
Palocci relata R$ 333,6 milhões em propinas
Noruega suspende repasse para Amazônia
Folha de S. Paulo
Aperto orçamentário traz risco de paralisia de programas federais
Mais de 3 milhões estão sem trabalho há ao menos 2 anos
Bolsonaro avalia vetos a projeto sobre abuso de autoridade
Ex-OAS delatou propina de R$ 1 milhão a Rodrigo Garcia
Bolsonaro avalia vetos a projeto sobre abuso de autoridade
Presidente é um ingrato que nada saba, diz Frota
Radares móveis em rodovias federais são suspensos
Acordo com organização social cabe ao reitor, diz secretário do MEC
Noruega anuncia corte de verba do Fundo Amazônia
China faz exercícios militares perto da fronteira com Hong Kong
Valor Econômico
CNJ abre depósitos judiciais de R$ 500 bi a banco privado
Noruega suspende doações à Amazônia
Balanço ruim faz Ultra perder R$ 1,8 bi na B3
‘Valor’ premia na terça empresas campeãs do ano
Movimento de capitais indica aflição do mercado
Acusada de fraude, GE se diz vítima de manipulador
EDITORIAIS
O Globo
Déficit dos estados não para de aumentar
Dados do Tesouro reforçam a importância da extensão da reforma da Previdência
Na passagem pela Câmara do projeto da reforma da Previdência, interesses políticos paroquiais contribuíram para a retirada dos estados e municípios do alcance das mudanças. Uma série de conflitos regionais impediu o óbvio, para que governadores e prefeitos —estes às portas de uma campanha eleitoral —não sejam obrigados a enfrentar em cada estado e cidade as mesmas corporações que atuam em Brasília contra a reforma. Em geral, grupos de pressão de servidores públicos, categoria privilegiada pelos sistemas de seguridade.
Para não atrasar a tramitação de um assunto urgente, imprescindível para permitir a abertura de um novo ciclo de mudanças na economia, chegou-se ao entendimento de que a extensão da reforma a toda a Federação será feita a partir do Senado, por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional específica, a “PEC Paralela”. Evita-se, assim, que todas as alterações já aprovadas na Câmara deixem de seguir seu curso, para serem votadas e aprovadas sem demora, como exige a situação de emergência fiscal em que se encontra o país.
Espera-se que senadores e deputados, principalmente estes, superem dificuldades políticas com governadores e prefeitos, a fim de que toda a Federação possa fazer o ajuste em suas contas. A Câmara, ao aprovar a proposta da reforma, depois da devida negociação em cima do projeto, já demonstrou entender o que significam cinco anos consecutivos de déficits na União, causados principalmente pelos desequilíbrios previdenciários.
A crise que governadores e prefeitos enfrentam, sejam da situação ou oposição, é a mesma. Devido à incontornável tendência da Previdência de acumular resultados negativos, à medida que a idade média da população sobe, não demorará para que todos os entes federativos passem a fechar suas contas de gastos com pessoal no vermelho, fora dos parâmetros estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal. E assim contrariam a necessária prudência na gestão das finanças públicas.
Estatísticas atualizadas sobre a questão, divulgadas quarta-feira pelo Tesouro, confirmam o desastre em curso. Por isso, pelo país afora há um número crescente de casos de serviços básicos em pane. Na saúde, na falta de manutenção das cidades, na ausência de investimentos, e muito mais.
A Previdência dos servidores estaduais fechou o ano passado com um resultado negativo de R$ 101 bilhões, 8% a mais que os R$93,9 bilhões de 2017. Governadores tentam maquiar estatísticas, mas não escondem a realidade: 12 estados deixaram de cumprir o limite de 60% das receitas líquidas estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal para os gastos com pessoal, entre os quais estão aposentadorias e pensões. Entre eles, o Rio de Janeiro.
Os dados chegam em momento oportuno, quando a reforma começa a ser discutida no Senado.
O Globo
Populismo quebrou Argentina, agora preocupada com as suas instituições
Volta de Cristina ameaça quem atuou em investigações de casos de corrupção na era kirchnerista
Os argentinos terminaram a semana cerca de 20% mais pobres do que estavam no último sábado. É o efeito da crise de confiança no país, refletida no abrupto aumento da inflação e desvalorização da moeda, o peso, depois dos resultados das eleições primárias de domingo passado. Nelas, o candidato oposicionista Alberto Fernández obteve mais de 47% dos votos, superando com larga vantagem o atual presidente Mauricio Macri, com 32%, num resultado imprevisto por vencedor, derrotado e todos os institutos de pesquisa.
Na raiz do pânico financeiro após as eleições há um nome e sobrenome: Cristina Kirchner, ex-presidente, líder de uma ala do peronismo, que escolheu Fernández para liderar a chapa presidencial e ficou com a candidatura à Vice-Presidência.
Ela encarna o símbolo de um período (2003-2015) de populismo iniciado por seu falecido marido, Néstor, durante o qual o gasto público da Argentina quase duplicou — passou de 23% para 43% do Produto Interno Bruto, segundo dados do Fundo Monetário Internacional. Como ocorreu em outros países, inclusive no Brasil de Lula e Dilma, o salto nas despesas governamentais ocorreu durante um ciclo de valorização das commodities.
Passada a bonança, veio a conta do desperdício. Cristina entregou a Macri um país falido. Ele errou ao optar pela lassidão com as reformas necessárias ao Estado argentino. Sua política gradualista não foi suficiente para conter a inflação. A consequência política foi o voto de protesto nas primárias, contra a reeleição de Macri.
A simples possibilidade de retorno a uma era de populismo fiscal semeou pânico em investidores e deflagrou uma ascensão inflacionária já percebida nos corredores dos supermercados — a clássica cena de consumidores comprando alimentos para estocar. Inflação não tem partido nem ideologia e seu impacto deverá ser decisivo na eleição presidencial de outubro, tanto para o atual quanto para o futuro governo, seja qual for.
Nas últimas 48 horas cresceu na Argentina uma preocupação adicional, com um suposto plano kirchnerista para dominar o Poder Judiciário, substituindo juízes e procuradores que nos últimos quatro anos investigaram casos de corrupção nos governos Kirchner. A captura de tribunais e de órgãos de controle é item primordial na cesta básica dos governos autoritários. Pode entusiasmar alguns, por algum tempo, mas é essencialmente corrosiva para as instituições de uma sociedade onde a maioria há muito tempo decidiu pela democracia.
O Estado de S. Paulo
Todos sob a lei
Finalmente o Congresso aprovou um projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade. Era uma necessidade institucional de longa data, reconhecida, por exemplo, em abril de 2009, por ocasião do II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo, assinado pelos chefes dos Três Poderes. Entre as matérias prioritárias de estudo, o pacto incluiu a “revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais”.
O projeto de lei aprovado pelo Congresso tem dois grandes méritos. O primeiro é a inclusão de todos os cidadãos, também as autoridades dos Três Poderes e os membros do Ministério Público, sob o império da lei. Com a entrada em vigor da nova lei, haverá consequências jurídicas claras – estão previstas sanções penais – para quem dolosamente utilizar o cargo público para finalidades estranhas à lei.
Por exemplo, o primeiro crime previsto no projeto de lei é “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, ao qual se atribui pena de detenção de um a quatro anos, além de multa. Tal previsão é uma necessária manifestação de respeito à liberdade de todos os cidadãos. É muito grave, exigindo a intervenção penal do Estado, que uma autoridade, mesmo sabendo que não poderia atuar assim, utilize seu cargo para prender ilegalmente uma pessoa.
A inclusão das práticas abusivas por parte das autoridades no rol dos tipos penais é muito pedagógica para toda a sociedade. Ao prever consequências jurídicas para os casos de abuso, reafirma-se um ponto fundamental da República. Os órgãos e cargos públicos estão destinados a servir o interesse público, de acordo com as competências, limites e controles previstos em lei. O poder estatal tem uma finalidade determinada, e é crime o seu doloso desvirtuamento.
O segundo grande mérito do projeto de lei sobre abuso de autoridade aprovado pelo Congresso é ter excluído explicitamente qualquer hipótese de crime de hermenêutica. Nenhuma autoridade será punida por dar uma determinada interpretação à lei na hora de aplicá-la. Tal ponto era essencial para o equilíbrio do projeto, já que um texto dúbio sobre essa matéria poderia dar brecha para pressões e achaques contra as autoridades. Da mesma forma que a lei deve punir autoridades que abusem dolosamente do poder próprio do cargo, a lei deve assegurar que as autoridades possam exercer todo o poder próprio do cargo.
Esse equilíbrio – de punir o abuso e, ao mesmo tempo, evitar que a possibilidade de punição se converta em ameaça contra o exercício da função pública – foi encontrado pela expressa menção no primeiro artigo do projeto das seguintes ressalvas. “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, diz o texto. E para que não pairasse nenhuma dúvida o legislador ainda estabeleceu que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”.
De acordo com o projeto de lei aprovado, pode responder pelos crimes de abuso de autoridade todo agente público, servidor ou não, da administração direta e indireta dos Três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Estão incluídos, assim, os servidores públicos e militares, as pessoas a eles equiparadas, bem como os membros do Legislativo, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. É equivocado, portanto, afirmar que o projeto seria uma reação do Legislativo – dos políticos – contra o Judiciário e o Ministério Público. A lei atinge a todas as autoridades dos Três Poderes.
Já havia no Direito brasileiro o crime de desacato à autoridade. Faltava o outro lado – o crime de abuso de autoridade.
O Estado de S. Paulo
A gestão errática da educação
Um mês e quatro dias após ter lançado o documento Compromisso Nacional pela Educação Básica, com medidas importantes a serem adotadas até 2022, o Ministério da Educação (MEC) tomou duas decisões surpreendentes. Rompeu o acordo de cooperação que mantinha com a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), o que resultou na suspensão do repasse de R$ 130 milhões para as 3,5 mil escolas em todo o País que participam do programa federal de modernização do ensino médio. E anunciou o fim do programa de ensino básico em tempo integral, que financia escolas públicas municipais e estaduais nas atividades de português e matemática.
Os três acontecimentos dão a medida das dificuldades de gestão do MEC no governo do presidente Bolsonaro, especialmente no âmbito do ensino médio, no qual a diretoria do Inep, responsável pelas avaliações desse ciclo educacional, está sem titular há alguns meses. Desde a posse de Bolsonaro, o cargo ficou mais tempo vago do que ocupado.
No caso do acordo com a OEI, os recursos destinavam-se à aquisição de materiais, à contratação de serviços e à compra de equipamentos. Pela medida provisória que o criou, em 2017, o programa financiado por esses recursos deveria ser implantado experimentalmente nessas escolas em 2020. Com o rompimento do acordo por decisão do ministro Abraham Weintraub, consultores contratados para assessorar o MEC foram desligados. O ministro alegou que o convênio colide com as normas para formulação de acordos com organismos multilaterais. Disse, também, que o texto do convênio não teria sido analisado pela consultoria jurídica do MEC e que o projeto não teria sido elaborado pela pasta. Como vários consultores desligados atuavam na área de tecnologia da informação, alguns sistemas do MEC – entre eles o relativo à modernização do ensino básico – ficaram sem suporte técnico.
Quanto ao programa de ensino básico em tempo integral, o MEC quer substituí-lo por uma política que estimule as universidades a ceder espaços ociosos para alunos desse ciclo educacional. A ideia é que eles estudem no contraturno das aulas do ensino superior. As instituições que, com esse objetivo, assinarem convênio com o governo receberão uma nota extra nas avaliações de desempenho. Segundo o Inep, o valor da pontuação extra ainda não foi calculado, mas deverá ficar num patamar que não seja irrelevante, desestimulando as universidades a aderirem ao programa, nem tão alto, a ponto de desfigurar a avaliação do ensino superior.
Nos meios educacionais, essa informação deixou os especialistas intrigados. Em primeiro, por que em vez de limitar o convênio com as universidades públicas, o MEC anunciou que pretende estendê-lo às universidades privadas?Em segundo lugar, por que a concessão do bônus melhorará as classificações das universidades particulares nos rankings de avaliação, sem que tenham tido melhoria concreta na qualidade do ensino que oferecem? O recebimento do bônus também permitirá às universidades particulares afastar o risco de terem notas baixas e serem punidas. Desde que o MEC anunciou essa política, as entidades que representam as universidades públicas não se manifestaram. Já o MEC reconheceu que dialogou com a Associação Nacional das Universidades Particulares, antes de anunciar a nova política.
Como se vê, num curto período de tempo, o MEC voltou a agir de modo errático, desperdiçando as esperanças de que vinha tentando recuperar o tempo perdido nos primeiros sete meses do governo, graças ao lançamento do Compromisso Nacional pela Educação Básica. Ele descontinuou programas que estavam em andamento. E os que anunciou carecem de informações básicas, como diretrizes e metas.
Desde que assumiu o governo, Bolsonaro criticou o excesso de ênfase dos governos anteriores no ensino superior e prometeu que daria prioridade ao ensino básico. Até o momento, o MEC continua ineficiente e inoperante. Se continuar assim, a promessa do presidente jamais será cumprida.
O Estado de S. Paulo
O retrato da pobreza
Em consideração aos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável para 2030 ratificados em 2015 pelos 193 Estados-membros da Assembleia-Geral da ONU, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) iniciou a publicação da série Cadernos ODS, diagnosticando os desafios a serem enfrentados pelo Brasil. O primeiro caderno trata do maior desafio global para o desenvolvimento sustentável, segundo a ONU: a erradicação da pobreza. Nem todos os indicadores propostos pela ONU puderam ser mensurados, seja por falta de dados consolidados, seja porque os próprios indicadores ainda estão em fase de definição conceitual. Desde já, o Ipea avalia que o caminho para o Brasil é difícil, mas factível.
Uma das primeiras medidas da Comissão da Secretaria de Governo da Presidência da República criada para implementar a Agenda 2030 foi adequar os objetivos gerais da ONU à conjuntura nacional. Isso porque a renda per capita do Brasil é média-alta, de modo que os índices de pobreza relativos não podem ser equiparados aos de países mais pobres. Em outras palavras, o País pode e deve ir além das metas gerais da ONU.
A linha internacional de miséria da ONU é de US$ 1,90 per capita por dia. Por esse critério, em 2016, 6,6% da população brasileira se encontrava na miséria, taxa que subiu para 7,4% em 2017, devido à recessão. É uma incidência abaixo da média global (10%), mas acima da América Latina (4,1%) e bem acima dos outros países de renda média-alta (1,7%), nos quais a menor desigualdade de renda faz com que a incidência da pobreza seja menor. Para atingir a meta até 2030, o País precisaria reduzir a miséria em algo entre 0,3% e 0,4% ao ano. É plausível, já que entre 1990 e 2015 ela caiu em média 0,5% ao ano. A meta adaptada para o Brasil, contudo, é mais ambiciosa: renda per capita diária de US$ 3,20. Nesse caso, os miseráveis são 13% da população, e será preciso reduzir esse índice ao ritmo de 0,8% ao ano.
Há que considerar as disparidades regionais e demográficas que determinam focos de miséria. Entre 2016 e 2017 a proporção de pobres cresceu quase 2% nas áreas rurais, ultrapassando 19%, enquanto nas cidades a variação foi de 4,7% para 5,4%. A população rural representa 15% do total de brasileiros, mas 37% dos pobres do País vivem no campo. Em termos etários, a maior incidência está entre as crianças (10%), caindo linearmente até se tornar menor que 1% entre idosos. Por outro lado, pretos e pardos moradores do Norte e Nordeste representam 53% da população pobre. Assim, serão necessárias políticas que promovam uma redução expressiva da miséria nas áreas rurais, em especial no Norte e Nordeste, e entre pretos e pardos e crianças até os 14 anos.
Outra meta, mais difícil, mas não impossível, é a proteção social integral. Também nesse ponto os idosos pobres estão mais protegidos: 90% recebem benefícios previdenciários e sociais. Já para os demais segmentos da população pobre (como deficientes, trabalhadores, mulheres) os indicadores oscilam entre 66% e 70%. Um mecanismo crucial é o Bolsa Família, que cobre cerca de dois terços da população pobre. São quase 14 milhões de famílias, mais de 43 milhões de pessoas, ou quase 25% da população. Trata-se sobretudo de calibrar o programa e reforçar as transferências para crianças de até 14 anos.
Outra meta é a redução da vulnerabilidade dos mais pobres em relação a desastres ambientais, econômicos ou sociais. É um desafio grande, já que menos de 31% dos governos municipais possuem estratégias de redução de risco de desastres, e mesmo nos que possuem, há por vezes taxas elevadas de mortos, desaparecidos e afetados por essas fatalidades.
Em resumo, se o Brasil quiser cumprir a sua parte na redução global da pobreza, precisará antes de tudo avaliar bem as suas heterogeneidades regionais e demográficas. Além disso precisará combinar a retomada do crescimento econômico com programas que promovam uma distribuição de renda mais equitativa. No combate à pobreza nacional, uma coisa não se sustenta sem a outra.
Folha de S. Paulo
Passos liberais
Medida provisória aprovada pela Câmara diminui regulação de atividades empresariais; objetivos são corretos, mas texto depende de acomodação jurídica
Recém-aprovada pela Câmara dos Deputados, a medida provisória 881 se tomou conhecida como MP da Liberdade Econômica. Grandiloqüência marqueteira à parte, o texto que segue ao Senado facilita, de fato, a atividade empresarial.
Em linhas gerais, busca-se reforçar o princípio de que a interferência do Estado nas relações privadas deve ser cautelosa e subsidiária, ressalvados os casos de hipossuficiência de uma das partes ou de manifesto interesse público.
Se a proposição for convertida em lei e acolhida na jurisprudência, a interferência do Judiciário nos contratos tende a cair. A prevalência do livremente contratado sai fortalecida, e os envolvidos terão maior dificuldade para conseguir alterações nos tribunais.
Tal objetivo se mostra meritório, decerto, uma vez garantido que não haja prejuízo às normas de ordem pública, como a defesa do consumidor, e que não se configure assimetria de poder na transação.
Outro propósito relevante é reduzir as exigências excessivas de alvarás e permissões a empreendimentos. Atividades de baixo risco, por exemplo, deixam de necessitar de licença prévia.
Fica ainda mais bem estabelecida a responsabilidade limitada de sócios, a não ser em caso de conduta dolosa e atuação em benefício próprio, em desfavor da empresa.
Restará verificar a acolhida de tal dispositivo pela Justiça, mas se trata de um importante fator de redução de riscos com vistas a incentivar a iniciativa privada.
Há itens potencialmente controversos, como a permissão de trabalho aos domingos, antes restrita a algumas atividades, e a flexibilização do registro de ponto em acordos individuais ou coletivos, que pode dificultar a caracterização de horas extras. Eventuais abusos em desfavor do trabalhador deverão ser alvo da Justiça.
Por fim, os dispositivos para limitar o excesso regulatório e a previsão de efeito vinculante de decisões administrativas do poder público —o que é definido para um cidadão vale para todos em situações idênticas— é louvável, mas sua aplicação provavelmente será cercada de dificuldades.
Afinal, restringir condutas voluntaristas —ou mesmo corruptas— de agentes do Estado pressupõe um arcabouço legal mais simples e também uma mudança cultural. As duas condições levam tempo para se materializar.
Observando cautela e ressalvas, a MP tem o mérito de atacar entraves óbvios para o empreendimento privado. Fez bem a Câmara ao limpar o texto de uma pletora de emendas que o tornaria complexo e polêmico em demasia.
Algum processo de acomodação jurídica será necessário, como já ocorre com a reforma trabalhista. As novas regras, de todo modo, merecem a experiência.
Folha de S. Paulo
Desafio à ditadura
Manifestações em Hong Kong ampliam pauta e criam dilema para o governo chinês
Os grandes protestos de rua em Hong Kong começaram por uma razão muito precisa —demandava-se a reversão de uma lei que autorizava a deportação de cidadãos do território para a China continental. De junho para cá, porém, as manifestações evoluíram para uma pauta mais abstrata, em que os participantes exigem mais democracia.
Trata-se de problema grave para a ditadura de Pequim, que não tolera contestações à sua autoridade. Lida-se com uma região administrativa especial, onde as pessoas gozam de mais liberdades devido ao acordo firmado com o Reino Unido quando da devolução da ex-colônia britânica, em 1997.
A China se comprometeu a respeitar a autonomia do território por pelo menos 50 anos (até 2047), num arranjo que ficou conhecido como “um país, dois sistemas”.
Embora tal acordo venha sendo formalmente cumprido, cidadãos de Hong Kong sentem que o governo central trabalha para minar pouco a pouco seus direitos e garantias. A tentativa de aprovar a lei de deportação seria um exemplo.
O impasse entre manifestantes e autoridades testa os limites do sistema chinês. Teóricos do liberalismo sempre afirmaram que o processo de desenvolvimento econômico leva à democratização.
Isso ocorreria por duas razões principais. Em primeiro lugar, o surgimento de uma grande classe média, que se torna cada vez mais exigente, criaria uma demanda irresistível por abertura política.
O outro motivo é ainda mais teórico. No longo prazo, a manutenção do crescimento econômico depende de um fluxo constante de inovações e aumentos de produtividade que seria impossível assegurar num regime em que pessoas, em especial os cientistas, não podem trocar informações livremente.
Desenvolvimento duradouro e ditadura seriam, portanto, essencialmente incompatíveis.
A China, ao menos até aqui, desmente essas previsões. Livrou centenas de milhões de pessoas da pobreza e se converte em potência científica sob regime autoritário. A pergunta que fica é se os protestos em Hong Kong não são o início de um processo de abertura política.
Pequim, obviamente, deseja sufocar o movimento. Evita, contudo, recorrer à violência nua e crua, como fez nos protestos da praça da Paz Celestial, quando despachou tanques para enfrentar estudantes.
A China de 2019 não é a de 1989. O gigante tem hoje interesses comerciais e financeiros que se veriam prejudicados por uma eventual onda de repressão, e os manifestantes sabem disso — num impasse potencialmente explosivo.