A sociedade brasileira tem intensificado sua participação política nos últimos anos. Somos agora o país do futebol, do carnaval e, pouco a pouco, da política! As redes sociais, claro, impulsionaram essa efervescência, mas não explicam tudo. Outro vetor que impulsiona essa tendência tem sido a impaciência do eleitor com a baixa capacidade decisória de nossa política. As pessoas estão exasperadas com a lentidão das instituições em (não) responder às suas demandas. Não se trata de uma tendência exclusiva do Brasil, mas, por aqui, a imensidão dos problemas não nos dá o luxo de esperar.
Francis Fukuyama – se me permitem a ousadia de citá-lo depois da baboseira do seu “fim da História” – propõe uma interessante perspectiva para analisar essa tendência: as democracias liberais – especialmente os Estados Unidos – teriam escorregado para o terreno pantanoso da “vetocracia”, situação em que os vários atores relevantes da política são fortes para barrar propostas controversas ou polarizadoras, mas incapazes, mesmo em amplas coalizões, de tocar programas de seu interesse. Tudo é paralisia, nada de vulto acontece.
É evidente que tal situação não pode perdurar. A acumulação de impasses acabará impondo algum tipo de saída. A radicalização que se percebe na política em nível mundial – muitas vezes interpretada como uma escalada populista – parece responder a essa frustração com a paralisia decisória das instituições democráticas. O Brasil não está fora desse grande movimento. Nesse cenário, muitos interpretam que a disfuncionalidade política no Brasil está radicada em nosso sistema de governo, o presidencialismo, que não seria capaz de formar maiorias aptas a tocar as reformas essenciais para que voltemos a crescer com redistribuição de renda.
O presidencialismo não funcionaria – segue o raciocínio – porque é chamado a realizar a quadratura política do círculo. A formação de maiorias indispensáveis para tocar programas de governo requer um nível de concessões tão amplo que, paradoxalmente, uma vez formada, a maioria parlamentar já está desidratada programaticamente. Essas negociações para formação de “bases parlamentares” não são bem vistas pela população. Tudo se passa como se o objetivo fosse unicamente repartir os espaços de poder no Estado, para saciar grupos de interesse. Certa ou errada – ou exagerada –, essa é a percepção que predomina. E que provoca repulsa crescente.
Para alguns, a solução seria um sistema híbrido, o semipresidencialismo, em que o Congresso acabaria por praticamente assumir a gestão executiva, mas com o presidente detendo ainda importantes competências. A proposta tem certa inspiração no modelo francês – e também no de Portugal –, em que o parlamentarismo é mitigado pela presença de presidentes com atribuições efetivas, em contraste com os sistemas parlamentaristas “puros”, em que o chefe de Estado tem funções essencialmente cerimoniais. Neste último modelo se enquadram, por exemplo, a Itália – onde o presidente chega a ser eleito pelo Parlamento –, o Reino Unido e vários países da Europa Setentrional – onde prevalecem monarcas como chefes de Estado.
O presidencialismo tout court, do qual o primeiro e mais bem-sucedido exemplo são os Estados Unidos, caracteriza-se por uma quase absoluta concentração da gestão pública no Poder Executivo, deixando para o Legislativo as funções clássicas de legislar, definir o orçamento e a tributação e fiscalizar o Executivo.
Interessante notar, em contraste, que o presidencialismo é mais presente nos países de menor grau de desenvolvimento. A América Latina é quase toda presidencialista, o que não é difícil de explicar: os Estados Unidos eram bem-sucedidos demais para não serem copiados e a sociedade civil era muito débil perante um Estado centralizado e estruturado como gestor de colônias de exploração.
Nosso presidencialismo já surgiu concentrando grandes poderes no chefe do Executivo, enquanto ao Legislativo cabia o papel de instância de homologação. O grande antagonismo era entre o centro e as províncias. Não por acaso, aqui e na América Latina em geral o presidencialismo tem um travo vagamente autoritário. Caudilhismo, bonapartismo e cesarismo foram adjetivos frequentes na descrição do sistema quando o nível de impasse levou ao acirramento aberto com o Legislativo. E nossa História foi uma longa procissão de intervenções militares, padrão, felizmente, superado. O autoritarismo nunca dispensou o presidencialismo, por óbvio. Parlamentarismo autoritário é uma antinomia.
Respeito, mas não tenho simpatia pela proposta de semipresidencialismo. Longe de dar maior efetividade, o sistema magnificaria nossos conflitos, que já não são poucos. A proposta surgiu de um diagnóstico errado. O problema não é o sistema de governo em si – e digo isso como defensor do parlamentarismo. A raiz da baixa efetividade de nossa política está no nosso sistema eleitoral. O sistema proporcional puro incentiva a fragmentação e, pior, impede a coesão e a disciplina partidárias. Os maiores adversários de um candidato a deputado, hoje, são seus próprios correligionários. Algumas dezenas de votos podem deixar um candidato sem a vaga, que será obtida por um triz por seu colega de partido.
Semipresidencialismo não dá samba, não é rima nem solução. A solução verdadeira é corrigir nosso sistema eleitoral, com a adoção do voto distrital misto, que combina as virtudes do voto proporcional – preserva minorias relevantes – com as do sistema distrital – forma maiorias eficazes, é simples, barato e vincula eleitos e eleitores. Mais ainda, o Senado já aprovou o projeto de lei que implanta o voto distrital misto. A decisão final está agora nas mãos da Câmara, sendo relator o deputado Samuel Moreira. Vamos em frente! (O Estado de S. Paulo – 22/08/2019)