Gil Castello Branco: A pescaria da Receita Federal

 

E conhecida a passagem bíblica na qual Jesus orientou os apóstolos a relançarem a rede de pesca ao mar, no mesmo local em que já haviam tentado, sem sucesso, a noite toda. Na nova ocasião, surpreendentemente, vieram peixes em abundância. Milagres à parte, as redes podem trazer surpresas. Enroscados nas malhas, eventualmente surgem cobras, jacarés e tubarões…

Lembrei-me do evento no Mar da Galileia na ocasião em que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão imediata das investigações instauradas na Receita Federal envolvendo mais de 130 contribuintes e afastou dois servidores do órgão, alegando: “São claros os indícios de desvio de finalidade na apuração da Receita Federal, que, sem critérios objetivos de seleção, pretendeu, de forma oblíqua e ilegal, investigar diversos agentes públicos, inclusive autoridades do Poder Judiciário, incluídos ministros do Supremo Tribunal Federal, sem que houvesse, repita-se, qualquer indício de irregularidade por parte desses contribuintes”.

A determinação ocorreu no âmbito do autoritário, ditatorial e indigerível inquérito em que o STF, à revelia do Ministério Público, investiga, julga e pune. Receio, porém, que o ministro e o STF estejam, mais uma vez, desinformados, tal como aconteceu quando censuraram, de forma atrapalhada, a revista eletrônica Crusoé, por imaginar que continha fake news.

Os procedimentos adotados pela Receita Federal, entretanto, foram oportunos, técnicos e impessoais.

Em março de 2017, a Receita Federal constituiu (Portaria Copes n° 7) a Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias/EPP-Fraude, para ampliar a prospecção de indícios de fraudes. Com base em metodologia amplamente descrita, e em critérios extremamente objetivos, lançou uma rede de pesca digital sobre mais de 800 mil agentes públicos, abrangendo cônjuges, dependentes, parentes até segundo grau, sócios e empregados domésticos. O alvo inicial foram os CPFs com patrimônio acima de R$ 5 milhões, aumento patrimonial e rendimentos isentos maiores do que R$ 500 mil e dinheiro em espécie acima de R$ 100 mil. Corte adicional no valor de rendimentos isentos superiores a R$ 1 milhão permitiu a identificação de 799 contribuintes.

Uma segunda rede de pesca digital foi lançada considerando os rendimentos isentos
dos agentes públicos superiores a R$ 2,5 milhões, ou sócios, cônjuges com rendimentos isentos maiores do que R$ 10 milhões. Assim, foram identificados 134 contribuintes que passaram a compor universo que seria objeto de análise individual, entre eles as esposas dos ministros Toffoli e Gilmar Mendes.

Em março de 2018, no balanço de um ano das atividades da EPP-Fraude, contido na Nota n° 48 RFB/Copes, ficou absolutamente claro que cada um dos 134 contribuintes listados poderia ter uma situação particular: “Portanto, sequer se afirma que todos os 134 contribuintes possuem irregularidades tributárias”.

Nesses casos, a praxe é acionar o contribuinte e conceder-lhe uma senha para que preste esclarecimentos por meio de um sistema eletrônico. Um auditor, porém, ao invés de somente abrir o espaço para as manifestações, deu acesso a todo o material produzido pela EPP-Fraude. Assim, os nomes dos ilustres ministros e familiares, bem como os de outras autoridades, vieram à tona. A Receita Federal abriu processo administrativo disciplinar, que está em curso, para apurar se o vazamento foi culposo ou doloso.

A meu ver, caberia às autoridades e parentes citados prestarem os esclarecimentos devidos, como qualquer contribuinte, ao invés de suspender as investigações, como fez o ministro do STF. A pescaria da Receita não pode ter “defeso” para proteger espécimes que se consideram —e não são —especiais e raras.

Voltando ao episódio bíblico (João 21:114), chamado de “A pesca maravilhosa”, creio que deve ser seguido o ensinamento de Jesus. A rede deve ser relançada, pois no local existem peixes grandes e, não se pode descartar, cobras, jacarés e tubarões enroscados. (O Globo – 13/08/2019)

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