Os profetas convencionais erraram na previsão de que a guerra comercial entre EUA e China se dissolveria numa paz administrada por sucessivos acordos parciais. A China dobrou a aposta, permitindo a flutuação do renminbi, uma paliçada destinada a proteger sua economia num confronto de longa duração. Frustrado, Donald Trump rumina a ideia explosiva de intervir nos mercados de moedas, deflagrando uma guerra cambial. Nesse cenário, Jair Bolsonaro precisaria fazer a lição de casa, revisitando a política externa conduzida por Getúlio Vargas na década de 1930.
Naquele intervalo dramático, entre o crash de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, EUA e Alemanha protagonizaram uma disputa global por esferas de influência econômica. Vargas definiu como sua prioridade o programa de arrancada industrial e a política externa apropriada: uma estratégia de equidistância ativa e pragmática. O Brasil navegaria a tormenta incrementando o intercâmbio com as duas grandes potências.
Assinamos Acordos de Compensação com a Alemanha, em 1934 e 1936, que facilitavam o comércio direto, sem uso de divisas internacionais. As importações de bens alemães saltaram de 9% do total, em 1932, para 25%, em 1938. Paralelamente, em 1935, o Brasil firmou um Tratado de Comércio com os EUA, o que suavizou a redução no fluxo de intercâmbios bilaterais. Os produtos americanos, que representavam 30% das nossas importações em 1932, ainda contribuíam com 24% do total em 1938.
O jogo pendular propiciou contratos de modernização militar com a Krupp e outras empresas alemãs, numa ponta, e concessões americanas no pagamento da dívida brasileira, além de ajuda técnica para a criação da Sumoc, berço de nosso Banco Central, na outra. A equidistância perdurou até o início da guerra, quando Vargas inclinou-se aos poucos para o campo dos Aliados. O lance final foi a barganha da declaração de guerra ao Eixo em troca do financiamento americano para a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional.
A Grande Depressão devastou o sistema de comércio internacional e destruiu o padrão ouro, delineando a paisagem tumultuosa na qual desenrolou-se a disputa geo-política entre EUA e Alemanha. Hoje, nove décadas depois, a rivalidade entre EUA, a potência estabelecida, e China, a potência ascendente, ameaça romper o intrincado tecido da economia globalizada.
Sob o neonacionalismo trumpiano, os EUA estão muito perto de ceder à tentação da guerra cambial. No horizonte de curto prazo, a estratégia de manipulação do dólar provocaria violentas ondas especulativas nos mercados financeiros, sem reduzir o déficit geral na conta-corrente dos EUA. Num prazo mais longo, a aventura abalaria o reinado do dólar, fragmentando a economia mundial em esferas regionais concorrentes. A tormenta que se avizinha atingirá um Brasil singularmente despreparado para enfrentá-la.
Vargas equilibrou-se entre as pressões conflitantes de seus principais assessores, utilizando-as como ferramentas táticas. Oswaldo Aranha, um convicto pan-americanista que defendia o alinhamento com os EUA, serviu como ministro da Fazenda, embaixador em Washington e, na conclusão do jogo pendular, ministro do Exterior. Já os generais Góes Monteiro e Gaspar Dutra, que se sucederam no Ministério da Guerra, operavam pela aproximação com a Alemanha. Mão firme no timão, Vargas identificou o interesse nacional, colocando-o acima da polêmica que crepitava no núcleo do governo.
Nada indica que Bolsonaro se debruçará sobre a lição de casa. Vargas tinha, ao seu lado, lideranças com luz própria que descortinavam alternativas políticas contrastantes. Bolsonaro, pelo contrário, cerca-se de figuras deploráveis, bufões imersos numa lagoa de misticismo ideológico, que rezam todos os dias no altar do “Deus de Trump”. De Ernesto Araújo a Eduardo Bolsonaro, passando por Olavo de Carvalho, os conselheiros do presidente em política externa cantam, em uníssono, o hino da direita nacionalista americana.
Há um preço a pagar quando se fazem escolhas eleitorais apocalípticas. Trump prepara-se para inflacioná-lo. (O Globo – 12/08/2019)