Cristiano Romero: Reforma e o custo do pacto civilizador

O debate sobre a necessidade de o país mudar seu sistema tributário começou logo depois da última “reforma” – a promulgação da Constituição “cidadã, em 1988. Elaborada na sequência de uma ditadura militar que nos subtraiu 21 anos de democracia, a Carta Magna procura atender à demanda da população, especialmente da parcela mais pobre, por mais civilização. Do “pacto” constituinte, nasceram o Sistema Unificado de Saúde (SUS), idealizado para universalizar o acesso gratuito a serviços médicos; o Benefício de Prestação Continuada (BPC), mecanismo criado para dar alento a pessoas que cheguem aos 65 anos sem ocupação, renda, família etc; o acesso universal de crianças e adolescentes ao ensino público e gratuito, entre outras conquistas de um povo marcado pela escravidão, a maior das infâmias. A Constituição também consolidou direitos alienáveis do cidadão numa democracia, como, o fim da censura e a liberdade de expressão.

Foi a Constituição que obrigou os primeiros presidentes eleitos em votação popular, após a ditadura, a ordenar que todas as crianças frequentem as escolas do ensino fundamental. Em 1953, ano em que a classe média foi às ruas proclamar que “o petróleo é nosso”, apenas 25% das crianças estavam matriculadas – é perturbador tentar entender por que aquela mesma classe média não se manifestava de forma ruidosa em relação ao nosso descaso histórico com educação.

Nas décadas seguintes, a taxa de matrícula aumentou, mas, na década de 1980, ainda havia 20% das crianças longe das escolas de 1º grau, uma ignomínia que fala muito do nosso atraso civilizador. A Constituição de 1988 foi um passo correto no enfrentamento dessa mazela, mas, hoje, sabemos que não basta dar diplomas aos alunos, é preciso ensinar com qualidade, mas esta é uma outra conversa. Note-se que, quando o assunto é ensino de 2º, o passo seguinte da formação educacional dos brasileiros, o índice de atendimento cai de forma trágica.

Os constituintes de 1988, talvez, crentes na ideia de que a Carta Magna resolveria todos os problemas do país, dirimiria todos os conflitos de uma sociedade diversa e desigual, a qualquer custo, colocaram no texto a possibilidade de uma “revisão constitucional” para dali a cinco anos (1993).

Seria a chance de corrigir exageros e, principalmente, de encontrar formas de dar sustentabilidade fiscal ao pacto civilizador. A “revisão”, em que o texto constitucional seria rediscutido, exceto as cláusulas pétreas, seria feita sem a exigência de aprovação por três quintos de deputados e senadores. Havia risco, sim, de o processo revisor suspender conquistas sociais obtidas em 1988, mas assim é a democracia.

O sistema tributário nascido da Constituição foi eleito o culpado de todas as nossas mazelas e, assim, deverá ser radicalmente reformado. Ex-dirigentes da Receita Federal são parcimoniosos quando falam de reforma. “Razões? Além do acadêmico e filosófico argumento de alinhamento com os modelos tributários de outros países, tudo o mais decorre de problemas existentes em normas constantes de leis ordinárias, que por elas poderiam ser corrigidos, sem qualquer alteração no texto constitucional”, diz Ricardo Pinheiro, ex-secretário adjunto da Receita Federal, hoje consultor tributário.

A alteração do atual regime da principal proposta na Câmara dos Deputados – elaborada pelo economista Bernard Appy – é a substituição de cinco tributos (ICMS, ISS, IPI. PIS e Cofins) pelo Imposto sobre Bens e Serviços – IBS. Esse imposto seria não-cumulativo, teria alíquota uniforme em todo o País e, talvez por traumas da guerra fiscal (algo não bem entendido pela maioria de nossos estudiosos), seria vedada a concessão de benefícios ou incentivos fiscais de qualquer natureza.

“Vedar incentivos ou benefícios fiscais acaba com a Zona Franca de Manaus, criada, não apenas, mas também, com foco na ocupação de espaço e preservação dos interesses territoriais da nação”, argumenta Pinheiro.

“Dadas as suas peculiaridades geoeconômicas, para ali foram atraídos, décadas atrás, graças aos incentivos fiscais adotados, investimentos produtivos que asseguraram e asseguram, até os dias atuais, centenas de milhares de empregos, além de desenvolvimento de projetos tecnológicos relevantes e fundamentais para o progresso do país. Alguém acredita que as empresas ali localizadas irão sobreviver sem alguma compensação fiscal? Que novos investimentos ali serão alocados?”

Como harmonizar essa vedação, indaga o ex-secretário, com os dispositivos constitucionais que asseguram a manutenção de incentivos e benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus? Já iniciaremos, adverte, um novo Sistema Tributário sob contraproducente e fraticida contencioso judicial.

A proposta em discussão na Câmara sugere a criação de um imposto seletivo para desestimular o consumo de produtos como cigarro e bebida alcóolica. “Não seria o caso de usar o imposto seletivo dentro de suas reais e amplas funções, efetivamente regulatórias, seja fomentar atividades econômicas, seja mitigar diferenças regionais e setoriais, seja combater concorrência predatória, seja, inclusive e quando for o caso, desestimular o consumo?”

Mexer no ICMS é prioridade de qualquer reforma. Pinheiro diz que problemas existem, mas não justificam tanta “ousadia”. “A considerar as justificativas apresentadas para a PEC 45, certamente mais seguro seria unificar a legislação do ICMS e centralizar sua normatização (um comitê gestor seria bastante). Para isso, uma Emenda Constitucional simples e objetiva. Centralizar, também, o contencioso administrativo, uniformizando a jurisprudência do ICMS, que poderia ser feita por norma daquele comitê gestor, se assim estabelecer a Emenda. E todos os incentivos e benefícios fiscais seriam nacionais. Portanto, sem Guerra Fiscal”, propõe Ricardo Pinheiro. (Valor Econômico – 28/08/2019)

Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras – E-mail: cristiano.romero@valor.com.br

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