MANCHETES
O Globo
Bolsonaro: ‘Sou assim mesmo, não tem estratégia’
Trump quer livre comércio com o Brasil
Paraguai vive risco de impeachment com crise de Itaipu
O Estado de S. Paulo
Trump defende livre-comércio entre EUA e Brasil
Auxiliares querem menos exposição de Bolsonaro
Cidadania e Educação sofrem os maiores cortes
‘Combate à lavagem ficaria prejudicado’
Folha de S. Paulo
Ato de Bolsonaro pode atrasar aval a acordo UE-Mercosul
Após motim, detentos são transferidos a outros estados
Entorno do presidente busca a lógica de suas falas
Brasil vai a reunião com negacionistas do clima pela 1a. vez
EDITORIAIS
O Globo
Bolsonaro ainda não assumiu a Presidência
Afirmações em desacordo com o cargo que ocupa formalmente prejudicam o governo e o país
Integrante da bancada do baixo clero durante 28 anos, o deputado e ex-capitão Jair Bolsonaro notabilizou-se pelo histrionismo. Sempre defendeu a ditadura militar e sua violência contra opositores, e trabalhou em favor de demandas corporativistas dos militares. Mas soube aproveitar ventos favoráveis para se tornar um candidato viável em 2018.
Teve a seu favor o cansaço com o lulo petismo e a esquerda em geral, assim como a impossibilidade de outras forças políticas lançarem um candidato competitivo de centro.
Outra sorte foi disputar o segundo turno com o representante do PT, Fernando Haddad. Assim, Bolsonaro ganhou uma eleição plebiscitária, atraindo muito eleitor mais pela rejeição à esquerdado que por apoio à sua agenda na totalidade.
Eleito, pensava-se que Bolsonaro abandonaria o figurino do baixo clero, o histrionismo dos tempos de Câmara, entendendo o seu papel. Não é o que se vê. O presidente mantém o comportamento de baixo clero, e configurava-se o que se temia: ele é uma das maiores ameaças ao próprio governo.
Há pouco, microfones captaram um comentário preconceituoso seu sobre os governadores nordestinos, os “paraíba”, em especial Flávio Dino,do PC do B do Maranhão. Em viagem à Bahia, pelo menos esforçou-se numa tentativa de reduzir o dano, até com chapéu de couro na cabeça.
O recuo de nada adiantou. Agora, ao criticar a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e seu presidente, Felipe Santa Cruz, por não ter sido possível quebrar os sigilos do defensor da pessoa que o esfaqueou — é prerrogativa legal e estatutária da OAB defender imunidades dos associados —, o presidente resolveu comentar o desaparecimento do pai de Felipe, Fernando Santa Cruz, militante da Ação Popular (AP).
Apesar de ser um caso já rastreado, Bolsonaro disse que se Felipe quisesse saber o que houve com o pai, lhe perguntasse. Na versão insustentável de Bolsonaro, Fernando foi “justiçado” por companheiros. Não importa para o presidente que na semana passada o próprio governo tenha emitido o atestado de óbito do pai do presidente da OAB, vítima de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.
Ao atacar a Comissão da Verdade, em que tramitam os casos de torturas, mortes e desaparecimentos, Bolsonaro tachou de “balela” documentos como os que lastreiam a certidão de óbito.
Se houvesse assumido de fato a Presidência, hoje Bolsonaro estaria preocupado com o fim do recesso do Congresso, na semana que vem, quando será retomado o debate sobre a reforma da Previdência, para que seja votada em segundo turno na Câmara. Estes, sim, são assuntos que deveriam preocupar Bolsonaro, cujo futuro político está sendo jogado nesta e nas demais reformas. Decide-se também a estabilidade do país.
Exploração de terras indígenas é causa de atrito com o Congresso
Supremo começa a arbitrar choques decorrentes da intenção de se abrir reservas a investimentos
Jair Bolsonaro está conduzindo seu plano para a exploração econômica de terras indígenas ao limite de um conflito institucional com o Congresso. Requisitada em caráter de urgência, a arbitragem do Supremo Tribunal Federal está prevista para ocorrer na sessão de amanhã.
Na segunda-feira ele argumentou em defesa da abertura das terras indígenas à exploração econômica, para expansão da agricultura, da mineração e do garimpo, entre outras atividades: “O Brasil vive de commodities. Daqui a pouco, o homem do campo vai perder a paciência e vai cuidar da vida dele. Vai vender aterra, aplicar (o dinheiro) aqui ou lá fora, e cuidar da vida dele. A gente vai viver do quê? O que nós temos aqui além de commodities?” Ele parece empenhado em cumprir supostos compromissos que teria assumido durante a campanha eleitoral. São legítimos, passíveis de mudanças legais, mas o presidente precisa se manter nos limites da legalidade constitucional.
Depois de 28 anos na vida parlamentar, Bolsonaro não pode alegar desconhecimento da Constituição, cujo Capítulo VIII, sob o título “Dos Índios”, reconhece os “direitos originários” dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e dá-lhes posse permanente, com “usufruto exclusivo” das riquezas. Determina à União a demarcação das terras, qualificando-as como “inalienáveis e indisponíveis”, e fixando os direitos dos índios sobre elas como “imprescritíveis”.No entanto, Bolsonaro insiste em testar os limites institucionais, sob estímulo da ala mais radical do lobby ruralista, que influi em decisões do governo, mas não reúne votos suficientes para se impor dentro da bancada parlamentar setorial.
Já no primeiro dia de governo, transferiu a demarcação e registro de terras indígenas, assim como a Funai, para o Ministério da Agricultura. Fez isso numa Medida Provisória (n° 870), que reestruturou ministérios. Em maio, o Congresso aprovou a MP, mas repôs a atividade de demarcação na Funai e devolveu-a ao Ministério da Justiça, onde estava. Insatisfeito, dias depois Bolsonaro editou outra Medida Provisória (n° 886), desfazendo a decisão do Congresso.
A oposição judicializou o conflito. O ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendeu o ato de Bolsonaro, liminarmente, lembrando a expressa proibição constitucional de reedição de normas vencidas no Congresso na mesma sessão legislativa. E pediu urgência no julgamento .
O caso mostra que não basta a vontade presidencial. Mudanças sempre são possíveis, mas é preciso respeitar a Constituição.
O Estado de S. Paulo
Custo elevado tolhe expansão do crédito
O estoque de operações de crédito do Sistema Financeiro Nacional atingiu R$ 3,3 trilhões em junho, com crescimento nominal de 0,4% no mês e de 5,1% em 12 meses. Ainda mais cresceram as concessões de crédito: 11,6% no mês e 11,9% em 12 meses. O que não mudou é a relação entre o crédito às pessoas físicas e jurídicas e o Produto Interno Bruto (PIB), estável em 47,2% nos meses de abril, maio e junho e apenas levemente superior à de 47% observada em junho de 2018.
O custo dos empréstimos ajuda a explicar por que famílias e empresas evitam o endividamento bancário. Às vésperas de reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC), em que a redução do juro básico é tida como provável pela maioria dos economistas, são escassos os sinais de queda dos juros cobrados pelos bancos e dos spreads (diferença entre o custo de captação e o custo de aplicação dos recursos).
Entre junho de 2018 e junho de 2019, enquanto a taxa básica de juros se mantinha em 6,5% ao ano, a inflação oficial em 12 meses caía de 4,39% para 3,37% e a atividade econômica pouco evoluía, o juro médio de operações com recursos livres realizadas com pessoas físicas subia 0,1 ponto porcentual, para 53,2% ao ano (e o spread subia 2,8 pontos porcentuais).
O peso das pessoas físicas no crédito bancário é crescente – e interessa aos bancos porque os juros são maiores. As famílias ocupam, assim, o espaço que era das empresas. Entre dezembro de 2017 e junho de 2019, o saldo de crédito das pessoas jurídicas diminuiu em termos nominais, para R$ 1,4 trilhão, enquanto o das pessoas físicas cresceu 13%, chegando próximo de R$ 1,9 trilhão. Em vez de ser instrumento apropriado para o desenvolvimento econômico, o crédito acaba sendo tomado como remédio, principalmente em operações caríssimas como o cheque especial.
O alto custo do crédito tem empurrado empresas com melhores perspectivas para o mercado de capitais, no qual podem emitir debêntures ou se capitalizar vendendo ações. O BC parece alimentar algum otimismo quanto à recuperação do crédito, embora o chefe do departamento de estatísticas do banco, Fernando Rocha, admita que o custo dos empréstimos ainda é muito elevado. Em parte isso se deve, segundo Rocha, à substituição do BNDES por outros bancos como fornecedores de crédito às empresas.
A política da raiva
O destampatório de Jair Bolsonaro nos últimos dias – especialmente virulento mesmo para os padrões do presidente – contribui para ampliar o seu isolamento político. Afinal, grande parte do eleitorado que sufragou o nome de Bolsonaro nas urnas no ano passado não o fez para que ele, uma vez na Presidência, passasse seus dias a alimentar violentos antagonismos com diversos setores da sociedade, dificultando consideravelmente a governabilidade. Mesmo entre os políticos que se elegeram na onda do bolsonarismo já há os que procuram manter uma distância prudente do presidente, pois temem ser identificados com a irresponsabilidade que tem caracterizado o comportamento de Bolsonaro.
Se entusiasmam os devotos mais fiéis da seita bolsonarista, as diatribes do presidente colaboram para anuviar ainda mais o sombrio horizonte político e econômico do País. O homem encarregado pelas urnas de dirigir os destinos nacionais choca diariamente a maioria dos brasileiros com declarações absurdas, baseadas em nada além de devaneios e despejadas sem qualquer respeito pelas normas da democracia e mesmo da civilidade. Tal comportamento irrefletido torna imprevisível tudo o que emana do gabinete presidencial. Hoje, sob esse comando irracional, é impossível dizer para onde vai o País.
Não à toa, as forças políticas no Congresso há algum tempo parecem se organizar para fazer avançar as reformas das quais o Brasil depende para evitar o colapso fiscal e ter alguma chance de retomar o crescimento econômico. Para o setor produtivo, o mais importante no momento é que o País reencontre o caminho da recuperação, colocando em segundo plano o destempero do presidente Bolsonaro, por mais infame que seja em algumas ocasiões.
Não é possível conceber, contudo, que um governo possa continuar indefinidamente na dependência dos humores do Congresso e, muito menos, da instabilidade emocional do presidente, que a cada dia se mostra menos preparado para o cargo que exerce. E esse despreparo não se manifesta apenas por sua patente e muitas vezes assumida ignorância a respeito dos principais desafios da administração do País. O maior sinal de que Bolsonaro não é vocacionado para a Presidência da República é sua incapacidade de aceitar os limites institucionais do regime democrático.
Em mais de uma ocasião, Bolsonaro agiu como se sua vontade pessoal fosse superior à Constituição, assinando decretos e medidas provisórias eivadas de ilegalidades. O presidente parece considerar que sua eleição transformou automaticamente em lei suas promessas de campanha e seus arroubos retóricos, bastando somente traduzi-los em linguagem jurídica.
Os bolsonaristas mais radicais, contudo, acreditam que Bolsonaro foi eleito justamente para questionar os pilares do sistema democrático, que para eles está inteiramente corrompido. Nessa campanha de saneamento nacional vale tudo, inclusive fraudar o passado, como fez recentemente o presidente ao atribuir a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, um dissidente do regime militar, ao grupo de esquerda do qual ele fazia parte, embora o próprio Estado brasileiro admita, em documentos oficiais, que esse dissidente desapareceu depois de ter sido preso pela polícia política.
Para Bolsonaro, contudo, esses documentos são, simplesmente, “balela”. O presidente segue assim o padrão de duvidar de tudo o que contraria sua visão de mundo, mesmo que tenha sido produzido por autoridades de dentro de seu próprio governo ou por especialistas sem qualquer vinculação partidária.
Assim, o presidente Bolsonaro tenta usar sua autoridade de chefe de Estado para transformar em letra morta a base factual da história brasileira, o que tornaria legítima qualquer opinião acerca do passado, mesmo as mais estapafúrdias e aquelas que se prestam a alimentar laivos liberticidas. Esse lamentável episódio não foi apenas um ataque isolado à memória de um dissidente político, mas uma demonstração cabal de que Bolsonaro não se sente constrangido por nenhuma das normas de convivência democrática. Um governo com esse espírito, que não respeita o passado, não anuncia um bom futuro.
Mais um massacre
Mais um massacre – desta vez no presídio Centro de Recuperação Regional de Altamira (CRRALT), no Pará, segunda-feira, que deixou 57 mortos – expõe a tragédia que vive há muitos anos o sistema penitenciário brasileiro. O poder público a tudo assiste impotente, limitando-se a tomar medidas paliativas, que em nada melhoram a situação calamitosa das prisões superlotadas. Ela é que cria as condições para que se amplie e se reforce cada vez mais o controle que organizações criminosas exercem sobre as prisões. E é a disputa de poder entre essas facções que provoca os massacres, num ciclo de violência que parece não ter fim.
Repetiu-se em Altamira o roteiro de mortes e cenas macabras que virou a marca dos massacres que sacodem regularmente os presídios. Desta vez, o massacre foi resultado de uma disputa entre o Comando Classe A (CCA) – organização criminosa que surgiu no Pará há 11 anos e domina a região de Altamira – e o Comando Vermelho (CV), com base no Rio de Janeiro. Os líderes do CCA atearam fogo a uma cela, e o incêndio logo se espalhou pelo pavilhão ocupado por integrantes do CV. Morreram asfixiados 41 presos e outros 16 foram decapitados.
O incêndio se propagou rapidamente por causa das instalações do presídio descritas como “péssimas” por relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicado justamente um dia antes. A penitenciária foi construída precariamente, adaptada a contêineres. Igualmente péssimas são as demais condições: superlotação – 342 presos para 163 vagas, mais que o dobro – e apenas 33 agentes penitenciários, que não têm condições de controlar a massa de presos. Não admira que seja tão fácil o controle da penitenciária pelas organizações criminosas.
Os presos fazem ali o que querem. Promovem rebelião, como em setembro de 2018, quando 7 presos morreram, 3 ficaram feridos e 16 tentaram fugir. Ou acertos de contas. Como reconheceu o secretário para Assuntos Penitenciários do Pará, Jarbas Vasconcelos, o CCA cumpriu à risca, disciplinadamente, seu objetivo de atacar somente o CV, liberando mesmo dois agentes penitenciários que haviam sido tomados como reféns.
O Centro de Recuperação Regional de Altamira é uma amostra da maior parte dos presídios do País. E a reação do poder público a mais esse trágico episódio é também um resumo do que se faz nesses casos. O ministro da Justiça, Sergio Moro, ligou para o governador Helder Barbalho (MDB), apresentou sua solidariedade e prometeu ajuda, no caso a transferência para presídios federais dos líderes das facções em luta. Quanto ao governo do Estado, seria surpreendente se adotasse alguma medida capaz de mudar substancialmente a situação.
É por isso que a situação nos presídios, salvo poucas exceções, como a criação dos presídios federais de segurança máxima, continua a se deteriorar. Os massacres e as rebeliões se sucedem. Nos últimos dois anos e meio, o saldo de mortos nesses episódios foi de 227. Boa parte deles no Norte e no Nordeste, em presídios de Manaus, Boa Vista e Rio Grande do Norte. Os mortos se contam às dezenas em cada caso. A esse total se devem acrescentar os 57 de Altamira.
Com os massacres, as cenas de selvageria se tornam cada vez mais frequentes – das decapitações até casos de canibalismo -, numa regressão ao primi-tivismo que enche o País de vergonha. Essa situação só pode mudar se e quando os governos estaduais – aos quais cabe cuidar do sistema penitenciário – e a União decidirem empreender uma ação conjunta de grande escala, para reduzir o déficit de vagas nos presídios e retomar o seu controle efetivo, há muito nas mãos de organizações criminosas. É esse o caldo de cultura que alimenta os massacres e as rebeliões, num circo de horrores.
As organizações comandam o crime – a começar pelo tráfico de drogas, há muito seu principal negócio – de dentro das prisões, onde agem livremente. E sob a proteção do Estado. Até quando isso vai continuar?
De volta ao realismo comercial?
Brasil e Estados Unidos, as duas maiores economias americanas, poderão enfim ligar-se por um acordo comercial, se as boas palavras de um e de outro lado tiverem algum valor prático. “Vamos trabalhar por um acordo de livre comércio com o Brasil”, disse na Casa Branca o presidente Donald Trump, num contato com jornalistas. O objetivo é firmar o acordo mais ambicioso e abrangente, disse em Brasília o secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Marcos Troyjo. Este será quase certamente o grande assunto do secretário de Comércio dos Estados Unidos, Wilbur Ross, no encontro programado para hoje, em Brasília, com o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes. O secretário americano já se encontrou em São Paulo com dirigentes de empresas do Brasil e dos Estados Unidos e a ideia de um pacto comercial foi explorada.
O governo brasileiro só poderá negociar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos em companhia dos demais sócios do Mercosul, Argentina, Paraguai e Uruguai. O bloco é uma união aduaneira e nenhum de seus membros pode firmar isoladamente um acordo daquele tipo. No caso do recém-concluído acordo com a União Europeia, os dois lados atuaram coletivamente.
A busca de um pacto comercial com os Estados Unidos foi anunciada pelo presidente Mauricio Macri, da Argentina, poucos dias depois de concluída a negociação do Mercosul com a União Europeia. A pauta diplomática do bloco sul-americano incluiria também o avanço em conversações do Japão, Canadá e Coreia. A Argentina ocupava, naquele momento, a presidência rotativa do Mercosul. O Brasil deveria assumir o posto logo depois.
Se a negociação com os Estados Unidos prosperar, os governos do Mercosul retomarão, em novas condições, uma agenda interrompida há pouco mais de 15 anos, quando os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner torpedearam o projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Sob liderança do petismo e do kirchnerismo, o Mercosul só manteve – e com muitos entraves – uma negociação com um grande mercado de primeiro mundo, a União Europeia.
Por um longo período, a diplomacia do bloco, subordinada a um terceiro-mundismo requentado, concentrou-se na busca de entendimentos Sul-Sul, dando prioridade a mercados modestos e pouco desenvolvidos. Enquanto isso, grandes parceiros emergentes, como China, Rússia e África do Sul, estavam mais interessados em fechar negócios com o mundo mais avançado e rico.
Além de negligenciar os entendimentos com parceiros mais desenvolvidos, o Mercosul ainda regrediu como bloco. Manteve o status formal de união aduaneira, mas nunca chegou a implantar plenamente as condições – menos ambiciosas – de área de livre comércio. Barreiras intrabloco foram mantidas e nunca se consolidou uma efetiva integração produtiva entre os sócios.
Enormes oportunidades foram perdidas. A China tornou-se o maior mercado para mercadorias brasileiras, mas apenas primárias, como produtos agrícolas e minerais. Os manufaturados nunca chegaram a representar 5% das vendas brasileiras. Os Estados Unidos permaneceram, individualmente, como segundo maior parceiro, mas com um comércio muito mais diversificado. Ano após ano, os manufaturados têm proporcionado cerca de 50% -e até mais – da receita obtida no mercado americano. Os governos petistas mostraram-se incapazes, por limitação ideológica, de buscar o máximo proveito em cada relação.
Liquidada a Alca, os EUA fecharam acordos comerciais com países da América do Sul e da América Central. Já eram associados ao México e ao Canadá no Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta). O Mercosul ficou para trás.
Se houver realismo e competência diplomática, o Mercosul poderá avançar, depois de muito atraso, no rumo da integração internacional. Mas o governo brasileiro terá de se mostrar capaz de distinguir entre interesse econômico e alinhamento. Se falhar, errará como o PT, mas com sinal trocado.
Folha de S. Paulo
Espiral de infâmias
Em série de declarações, como o ataque sórdido ao pai do presidente da OAB, Bolsonaro escancara despreparo, leviandade e inclinações autoritárias
Numa escalada sem precedentes de insultos às normas de convívio democrático, aos fatos históricos, às evidências científicas e aos direitos humanos, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) aguçou nos últimos dias as tensões e incertezas em torno de sua administração.
Se no início de mandato declarações e medidas estapafúrdias ainda podiam, com boa vontade, ser vistas como tentativa de satisfazer o eleitorado mais fiel e ideológico, o que se verifica agora é um padrão de atitudes que ofendem o Estado de Direito, reforçam preconceitos e aprofundam as divisões políticas.
Além de expor o despreparo do chefe do Executivo para desempenhar suas funções num quadro de coexistência com as diferenças, a insistência na agressão e na boçalidade revela uma personalidade sombria que parece se reconhecer, com júbilo, nas trevas dos porões da ditadura militar.
As insinuações sórdidas acerca do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz —morto, segundo as investigações, sob aguarda do poder autoritário—, são um exemplo da pequenez e da leviandade a que pode chegar o presidente.
Não espanta, aliás, que tenha classificado como “balela” documentos oficiais sobre abusos cometidos pelo regime. Já eram, afinal, conhecidos seus elogios ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, bem como suas simpatias pelas violações praticadas no submundo dos órgãos de repressão.
Enganou-se, infelizmente, quem esperou que a condição de presidente da República levaria o ex-deputado nanico a moderar o discurso e buscar alguma conciliação.
Pelo contrário, são os traços intolerantes e obscurantistas do mandatário que saltam aos olhos nos ataques e afirmações falsas dirigidos aos jornalistas Miriam Leitão e Glenn Greenwald, nas imposturas acercado desmatamento da Amazônia, nas ameaças de censura ao cinema, no tratamento injurioso aos nordestinos e no desdém pelo massacre de presos no Pará.
Talvez transtornado com as críticas à indicação vexatória de um filho à embaixada em Washington, ou comas investigações que envolvem outro, Bolsonaro aprofunda a estratégia populista e acentua a retórica de confrontação.
Com índices de aprovação aquém dos obtidos por seus antecessores em igual período do mandato, o presidente desperta crescente apreensão quanto a seu desempenho nos anos vindouros.
Para alguns analistas, os destemperos verbais já começam a fornecer munição para um eventual enquadramento em crime de responsabilidade , por procedimentos incompatíveis coma dignidade, a honra e o decoro do cargo.
Não se vê nenhum movimento nesse sentido, e a perspectiva de reforma da Previdência dá fôlego ao governo. Entretanto a recente espiral de infâmias não poderá se perpetuar sem consequências.
Chacina paraense
A carnificina no Centro de Recuperação de Altamira (PA), onde 57 detentos morreram assassinados na segunda (29), inscreve-se entre os capítulos mais hediondos de um sistema prisional que tem se notabilizado por produzir tragédias.
Para além da magnitude do massacre paraense, menor somente do que os ocorridos no Carandiru, em 1992, e no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (AM), no início de 2017, chocam os atos de barbárie.
Ao menos 16 dos mortos foram decapitados —gesto não apenas de crueldade extrema como também repleto de simbolismo.
Assusta ainda a reincidência. Apenas dois meses atrás, 55 presidiários foram chacinados em quatro penitenciárias de Manaus.
O motivo apontado pelas autoridades para os dois morticínios é a disputa entre facções criminosas. No caso mais recente, ele teria sido originado do confronto entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital pelo domínio das rotas de distribuição da cocaína que entra pelo rio Amazonas.
A explicação, contudo, apenas evidencia a falência do poder público na gestão carcerária. Se a contenda entre facínoras foi a fagulha, as condições acabrunhantes do presídio foram a pólvora.
Lá, 343 presos empilham-se em 163 vagas, de acordo com relatório do Conselho Nacional de Justiça. Somam-se à superlotação o déficit de agentes penitenciários, a falta de bloqueadores de celular e as estruturas precárias.
Embora só conte com espaço para acolher presos em regime fechado, o Centro de Recuperação de Altamira abriga também detentos em regime semiaberto.
Mais grave, não há separação entre presos provisórios, que aguardam julgamento, e os que já tiveram a sentença transitada em julgado; tampouco entre detentospri-mários e reincidentes —promiscuidade que favorece a arregimentação de novos soldados do crime.
Termina de compor a situação medieval do cárcere paraense a ausência de enfermaria, biblioteca, oficinas de trabalho e salas de aula.
A despeito do quadro complexo, o ministro da Justiça, Sergio Moro, preferiu um discurso simplista, ao propor que os responsáveis pela chacina sejam trancafiados “para sempre” em presídios federais.
Providências do gênero, entretanto, serão de pouca serventia para impedir novos massacres se as condições que os tornam possíveis —como o excesso de encarcerados e a situação desumana dos presídios— não forem enfrentadas comracionalidade pelos governos.