Em palestra recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, o general de exército Sérgio Etchegoyen, hoje na reserva, ressaltou a importância de superarmos em definitivo o enquadramento ideológico típico da guerra fria. Em termos simplificados, este se caracterizou pela polarização entre o Ocidente cristão, capitalista e parcialmente democrático, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, ateu e totalitário, sob a hegemonia da União Soviética. Adoto propositalmente os termos da época para ilustrar o denso caldo ideológico em que o mundo e o Brasil estavam mergulhados. A observação do general Etchegoyen é espantosamente oportuna. Custa a crer que 30 anos após a queda do Muro de Berlim tenha não apenas sobrevivido, mas recobrado força entre nós o modelo mental que caracterizou a guerra fria.
O bolsonarismo reavivou o fantasma da comunização do País para conquistar corações e mentes pela manipulação de medos, ainda que imaginários. Culpar o bolsonarismo pode confortar o espírito, mas não explica por que a estratégia funcionou. A verdade é que o PT propiciou à ultradireita a possibilidade de ressuscitar a “ameaça comunista”. Mesmo com a Venezuela chavista e a presença cubana no país vizinho, ela teria caído no vazio não fossem a ambiguidade ideológica do PT e as simpatias de seus governos pelos de Chávez-Maduro e dos irmãos Castro. Não apenas o partido facilitou a retórica bolsonarista, como também a mimetizou, ao acusar a Operação Lava Jato de estar a serviço do imperialismo norte-americano.
Com o colapso da economia venezuelana e a perda de influência do chavismo na região, a verossimilhança da suposta ameaça comunista está em rápida decomposição. Como não pode prescindir da produção de medos, há outra ameaça em ascensão no arsenal do bolsonarismo: a perda da soberania nacional pela suposta ação sub-reptícia de ONGs que, a pretexto de defender o meio ambiente, atuariam como instrumento de potências estrangeiras interessadas em explorar os recursos naturais do Brasil. Muda o conteúdo, mas o modelo mental é exatamente o mesmo: interesses antagônicos ao Brasil agem por intermédio de organizações de fachada para tolher ou suprimir os verdadeiros interesses nacionais. Teorias da conspiração tinham maior aderência à realidade geopolítica da guerra fria do que à do mundo contemporâneo, embora mesmo naquela época se prestassem a exageros e servissem à justificação de intervenções militares e derrubadas de presidentes eleitos.
Se antes tinham um pé na realidade, agora as teorias da conspiração flutuam ao sabor da paranoia e da desinformação manipulada politicamente. A suposição de que as ONGs ambientalistas de hoje sejam como os Partidos Comunistas de ontem e obedeçam ao comando de governos estrangeiros é sintoma de que ainda sobrevivem modelos mentais que deveriam ter sido ajustados à nova realidade do Brasil e do mundo há pelo menos 30 anos. Revela, além disso, incompreensão da dinâmica de sociedades abertas e democráticas num mundo cada vez mais integrado. Não é demais lembrar que foi Vladimir Putin que começou a moda de perseguir as ONGs que denunciavam a deriva autoritária de seu regime. As ONGs não são os únicos nem necessariamente os melhores representantes das causas que advogam, como por vezes se arvoram. Mas tampouco são correias de transmissão de governos e Estados nacionais.
São produto da busca da sociedade civil por um espaço de relativa autonomia diante do Estado e do mercado. ONGs globais têm conflitos com governos e empresas em seus países de origem, assim como nos países onde atuam por intermédio de suas representações locais. Conflitam, mas também cooperam, na concepção e implementação de políticas públicas. São especialmente atuantes na área do meio ambiente, por motivos nada misteriosos: nela estão em jogo questões globais, em especial a mudança do clima do planeta, uma preocupação de todos, em particular das gerações mais jovens. Interpretar essa nova realidade nos moldes da guerra fria é de um anacronismo atroz e perigoso.
Sem arranhar a sua soberania, o Brasil tem muito a ganhar num jogo de soma positiva com as ONGs ambientalistas, convergindo no essencial, ainda que eventualmente divergindo em pontos específicos, assim como bastante a perder num jogo de antagonismo sistemático que fornecerá razões ou puros pretextos para a imposição de barreiras protecionistas às exportações do nosso agronegócio. Exemplo extremo da paranoia em relação às ONGs ambientais pode ser encontrado em livro editado pela ultradireitista Tradição Família e Propriedade (TFP), intitulado Psicose Ambientalista. Nele o autor, Bertrand de Orleans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, sustenta que o ambientalismo nada mais é do que a reencarnação, sob novas vestes, verdes e não mais vermelhas, da ameaça comunista.
Que um extravagante reacionário sustente essa tese estapafúrdia é irrelevante. Outra coisa é o presidente da República citar o título do referido livro para descrever depreciativamente a preocupação do mundo com a Amazônia em encontro com Merkel e Macron, como fez Bolsonaro em reunião recente do G-20. Ainda mais quando secundado pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, militar de prestígio e principal ministro do governo, que em conversa com jornalistas, depois de mandar lideranças europeias “procurarem sua turma”, repetiu o surrado argumento de que as ONGs ambientalistas são pontas de lança de países estrangeiros interessados em bloquear o desenvolvimento do Brasil. Tem razão o general Etchegoyen: está mesmo mais do que na hora de superar a mentalidade da guerra fria. (O Estado de S. Paulo – 20/07/2019)
SERGIO FAUSTO, SUPREINTENDENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADOR DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP