Miriam Leitão: O real que ficou após a travessia

Muitas vezes a travessia pareceu impossível. Várias tentativas fracassaram, o atoleiro a ser vencido era imenso, havia divergências sobre a melhor estratégia. Aqueles tanques, carros blindados e tropas que saíram às ruas dias antes, os aviões da FAB que cruzaram os céus com as suas cargas foram vistos como naturais. Era uma guerra, o que se travava. No dia 1° de julho, uma sexta-feira, as agências bancárias ficaram abertas até mais tarde, para que se pudesse trocar o dinheiro velho pelo novo.

Vinte e cinco anos depois, a memória não registra a enormidade do feito, porque é natural ter uma moeda que não muda de nome há um quarto de século, da qual não se cortam zeros. É comum ter uma inflação que desce depois de subir um pouco, como agora. A taxa em 12 meses chegou perto de 5%, mas com o dado de junho voltará para 4%.

Segundo o IBGE, no exato dia de ontem, o Brasil tinha 81,1 milhões de pessoas com até 25 anos, 38% da população. Esses brasileiros jamais conviveram com outra moeda. Eles e os que eram pequenos naquela época podem se perguntar: por que ter tanques e carros blindados nas ruas e aviões da FAB nos céus? É que o novo plano quis trocar todo o meio circulante do país. Era o aparato para transportar o dinheiro. Outros planos aceitaram carimbar cédula velha com outro nome. O real quis marcar a inauguração da nova história monetária.

Hoje parece fácil. Não foi. Em março fora lançado o embrião da nova moeda, a URV. Os contratos foram refeitos e os preços recalculados nessa unidade de conta. Tudo voluntariamente. No dia marcado, a URV virou real. Aquele caminho foi necessário para convencer as mentes a deixar para trás a moeda indexada e inflacionada. Não foi simples, não foi sem risco.

Alguns economistas queriam outros caminhos. O PT defendia o pacto entre patrões e empregados, que nunca funcionou. Os economistas mais à direita receitavam o controle fiscal e monetário. Era necessário, mas não suficiente. Aquele momento era preciso encontrar uma estratégia para desindexar a economia. Nem o Plano Collor, que congelara os ativos financeiros e fizera com violência o controle monetário, havia conseguido vencer a inflação. Portanto, a sofisticada engenharia de transição era o melhor caminho.

O Plano Real não foi só essa transição

Os fracassos anteriores mostraram que a luta continuava após o Dia D. No começo de 1995, o então presidente Fernando Henrique aproveitou a popularidade dos primeiros seis meses de mandato e aprovou a PEC que mudou o capítulo econômico, acabando com o monopólio constitucional da Petrobras e da Telebrás. Na área de petróleo, a estatal continua excessivamente dominante, mas as empresas de telefonia seriam privatizadas antes do fim daquele primeiro mandato. Essas e outras ideias liberais foram implantadas, como a venda da Vale, a criação de agências reguladoras, a reforma administrativa, o fundo garantidor de crédito. Avanços relevantes vieram depois, como a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Quando eu quis dimensionar no livro “Saga Brasileira” o tamanho do tormento vivido pelo país, escolhi a conta da inflação acumulada entre dezembro de 1979 e dezembro de 1994. Incluí os primeiros seis meses do plano porque, como não houve congelamento, a taxa ficou ainda alta, apesar de declinante. Naqueles tumultuados 15 anos, o Brasil teve 13 trilhões e 342 bilhões por cento de inflação.

Houve, claro, vários erros. Demorar tanto a mudar o câmbio, perder no Congresso a idade mínima na reforma da Previdência, só passar a ter superávit primário a partir de 1998, por exemplo. Mas nada foi fácil. Nos meses seguintes, e por causa da queda da inflação, começou a maior crise bancária da história do país. Foi feita intervenção no Econômico, Nacional, Bamerindus, todos eles estavam entre os dez maiores bancos do Brasil. Mesmo com o terremoto, o real continuou. Quem olha para trás e aponta apenas o que se deixou de fazer, não vê a saga que foi romper com aquele doentio passado.

A inflação chegou a dois dígitos nos anos 1940, mas a ditadura militar, ao estabelecer a correção monetária, armou a bomba que só foi desarmada naquele 1° de julho. O Plano Real reduziu a inflação a um dígito, taxa que o país não havia visto por 50 anos. (O Globo – 02/07/2019)

Leia também

Diretório Nacional do Cidadania aprova, por unanimidade, fim da federação com o PSDB

O Diretório Nacional do Cidadania acolheu, por unanimidade, a...

Cidadania faz evento histórico para comemorar a democracia

Em comemoração aos 40 anos da retomada da democracia...

Historiador analisa trajetória dos partidos em 40 anos de democracia

Os partidos políticos, organismos centrais da vida democrática, são incapazes de se abrirem para a dinâmica de transformações que ocorrem na vida social e econômica.

Presidente estadual do Cidadania reúne vereadores baianos em Salvador

Encontro também teve participação remota do presidente nacional da...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!