Analogias históricas são, sempre e ao mesmo tempo, tentadoras e inexatas. O fantasma da República de Weimar, a frágil experiência democrática que em poucos anos sucumbiu a seus dilaceramentos internos, costuma ser uma das fontes preferidas de tais comparações, como se a desordem contemporânea guardasse em si o germe de algo parecido com o fascismo clássico. Então como agora, a democracia constitucional parecia fadada à derrota diante do bolchevismo, cedo demais desfigurado por elementos crescentes de intolerância e fanatismo, e especialmente diante da reorganização corporativa e autoritária de sociedades como a italiana ou a alemã. A demanda de disciplina supunha homens fortes e não podia admitir o jogo dos partidos, que enfraqueceria povos e destruiria nações, as quais, como voltam a dizer, devem ser cultuadas über alles.
Não é razoável acreditar que fascismo ou comunismo estejam às portas ou que nossas ruas e instituições devam ser palco de combates tremendos entre os adeptos de uma coisa ou da outra. Mas de Weimar ainda vêm advertências inquietantes, como as que se relacionam aos riscos da exacerbação sectária – suicida, a divisão entre social- democratas e comunistas – ou da submissão dos conservadores aos modos de agir e pensar da extrema direita. A desordem, explorada com método por essa direita subversiva, não prenunciava nenhuma revolução socialista; antes era a melhor amiga da ordem autoritária em preparação. E Weimar ruiria sob o peso da intrínseca miséria política evidenciada no sombrio diagnóstico de que, no fundo, não era mais do que “uma democracia sem democratas”.
Analogias não bastam, mas às vezes jogam uma luz indireta. Nosso tempo está atravessado por uma grande variedade de contradições e talvez a maior delas seja entre a unificação mercantil do mundo, até recentemente realizada sob a bandeira do liberalismo econômico, e as limitações da regulação política dos impactos que provoca, não em último lugar o esgotamento de recursos num mundo percebido como a única casa de que dispomos. Em momentos de maior otimismo chegou- se a supor como inscrita na própria natureza das coisas a constituição paulatina de uma sociedade civil global, que se somaria mais ou menos organicamente ao arcabouço de acordos e instituições nascidos no segundo pós-guerra. Os processos da economia, assim, não teriam curso automático, condicionados que estariam por múltiplos atores e personagens portadores de outro tipo de lógica.
A crise de 2008, tão ou mais grave que a de 1930, pôs em xeque essa perspectiva harmoniosa. Donald Trump não foi propriamente um raio em céu sereno, mas chocou, e cotidianamente ainda choca, com o nativismo virulento expresso em seu América first – de fato, a afirmação desabrida de interesses brutos – e a desconcertante denúncia de arranjos multilaterais criados em ampla medida pelos Estados Unidos, sem falar no caráter regressivo da agenda de costumes. Com Trump e seu deus de ira e ressentimento, a mais antiga democracia moderna abandona a linguagem da hegemonia e desdenha daquele softpower, que, apesar de tudo, foi um dos pilares do “século americano”, ao lado da imensa força produtiva e, naturalmente, da capacidade militar. A hegemonia americana, na definição famosa, nascia originalmente da fábrica, disciplinava almas e corpos e sobrepujava implacavelmente estruturas mais atrasadas, como a europeia. Agora a América é para poucos, repele internamente os “não americanos” e se move no mundo na base de ameaças e retaliações, mesmo contra velhos aliados.
As consequências que daí se seguem são surpreendentes. Recente número da revista The Economist sugere, com alarme, que hoje estão em risco não só o liberalismo clássico, de que a publicação é coerente baluarte, mas diretamente a própria ideia conservadora, tal como se cristalizou desde a Revolução Francesa. O princípio da cautela, o elogio da lenta evolução de práticas e costumes, a recusa de rupturas drásticas, que só artificiosamente desviariam uma sociedade do seu curso traçado ao longo de séculos, todos esses sinais típicos do conservadorismo “de ontem” têm sido contestados sistematicamente pelo agressivo revolucionarismo antimoderno da nova direita. E deve- se reconhecer que a narrativa agônica sobre o mundo formulada por tal “direita alternativa” teve sucesso até agora, especialmente na pars destruens, ainda que se possa duvidar que uma estratégia de guerra permanente – cultural e religiosa – possa substituir estavelmente a busca de consensos e valores compartilhados.
A esquerda não escapou ilesa do sarampão ideológico, basta lembrar que com o resultado eleitoral americano e fenômenos análogos, como o Brexit, houve quem imaginasse possível saudar o golpe de misericórdia na “globalização neoliberal”. Para essa parte da esquerda, não se trata de partir audaciosamente para a nova fronteira anunciada pela crescente interdependência, mas de recuar temerosamente para os limites do Estado-nação, só no interior do qual seria possível defender as conquistas do passado. Na verdade, essa esquerda “soberanista” mimetiza, em tom menor, o movimento do adversário, de cujas ações e de cujo programa se torna, querendo ou não, mero comparsa.
Eppur si muove. Nem governos que se veem como borrões do trumpismo podem se esquivar do novo horizonte global, como se viu ainda há pouco com o tratado entre os dois grandes blocos da América Latina e da Europa. Liberais, conservadores e socialistas, filhos legítimos da modernidade, continuam a ter relevantes chances de se renovar e retomar o controle da narrativa. Para tanto, tendo bem presente o vínculo nacional e o senso das realidades próximas, deverão sempre considerar o significado mais profundo de um cosmopolitismo moderno, o antídoto mais eficaz contra a ameaça de recuos pavorosos como o que se seguiu a Weimar. (O Estado de S. Paulo – 21/07/2019)