Eliane Cantanhêde: Exercício de paciência

No escuro, porque nunca tiveram acesso às conversas do Telegram obtidas ilegalmente, o governo e a cúpula da Lava Jato avaliam que o pior já passou para o agora ministro Sérgio Moro, mas ainda temem o que pode surgir de comprometedor envolvendo procuradores, particularmente o dono do celular e responsável pelo descuido, Deltan Dallagnol. Por ora, eles continuam apreensivos e na defensiva.

O último lote divulgado não é bonito para o procurador, que discute com colegas e com sua mulher como abrir uma empresa de palestras, sem assumi-la oficialmente, e ganhar muito dinheiro aproveitando-se da notoriedade da Lava Jato: “Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade”. Ele e seus companheiros de Lava Jato e de Ministério Público se esforçam para dizer que ali não há nada demais. Primeiro, porque não foi criada empresa nenhuma. Depois, porque o Conselho Nacional do Ministério Público já liberou palestras de promotores e procuradores, sejam remuneradas ou de graça. Não há ilegalidade na prática, portanto.

Dallagnol, aliás, tem duas palestras marcadas para agosto, ambas em Curitiba, sede da Lava Jato, e sobre combate à corrupção, a R$ 20 mil cada uma. No dia 1.º, no 23.º Congresso de Reprodução Assistida. No dia 25, no Congresso de Urologia. Segundo a rede de apoios a ele e à Lava Jato, um cachê será doado para a Associação Cristã de Assistência Social (Acridas) e o outro será usado na compra de sofisticado equipamento para o Hospital Universitário Cajuru. As palestras já estavam marcadas bem antes da divulgação das conversas atribuídas a Dallagnol pelo site The Intercept Brasil. O procurador nem pode cancelá- las, porque assinou contrato, nem vê motivo para isso, apesar de os diálogos continuarem sendo divulgados, um atrás do outro, exigindo respostas.

Aliás, essas palestras nem são as primeiras que ele faz neste ano. Em 11 de maio, falou sobre seu tema recorrente – combate à corrupção – no Encontro da Cidadania, em Campos do Jordão (SP), e recebeu R$ 29,7 mil, que, segundo a mesma rede de aliados, repartiu entre três entidades: Fundação Lia Maria Aguiar, que promoveu o evento e tem projetos sociais de dança, música e teatro; Hospital Erasto Gaertner, de tratamento do câncer infantil, em construção; e ONG Amigos do Bem, que desenvolve projetos sociais no sertão nordestino.

Dallagnol, porta-voz e personagem mais polêmico da Lava Jato, até porque é o que mais se expõe, já tinha entrado no redemoinho por palestras pagas, quando, há uns dois anos, foi divulgada a informação – correta – de que ele cobrou R$ 219 mil por uma série de palestras. Na época, alegou que havia doado o dinheiro justamente para a construção do Hospital Erasto Gaertner, que confirmou oficialmente, em seu site, essa versão.

O principal, porém, é que o CNMP analisou o caso e concluiu que promotores e procuradores têm o direito de fazer palestras e dar cursos pagos, podendo doar ou simplesmente guardar o que recebem. Logo, não é por aí que vão “pegar” um dos símbolos da Lava Jato. Podem agastá-lo, podem desgastá-lo na opinião pública e no mundo jurídico, podem exigir explicações dia sim, dia não. Mas, por enquanto, isso se resume a um mar de constrangimentos e a um exercício: o da paciência. De concreto, que possa comprometer objetivamente sua atuação profissional, nada há.

Bolsonaro. Ao largo de tantos problemas, da economia sob risco de recessão e de milhões de desempregados, o presidente da República acaba de abrir mais uma frente de batalha: as taxas de Fernando de Noronha. Como já disse o deputado Marcelo Ramos, presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência na Câmara, há uma total falta de prioridades. (O Estado de S. Paulo – 16/07/2019)

Eliane Cantanhêde

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