Desigualdade global ameaça democracia
Folha de S. Paulo
Enquanto pobreza cede na Ásia e rendimentos se concentram no topo em quase todos os países, classe média espremida no Ocidente recorre a líderes populistas que prometem trazer o passado de volta
Em nenhum outro período da história tantas pessoas saíram da pobreza extrema e ganharam acesso a bens e alimentos como nos últimos 40 anos. Mas enquanto milhões deixam a miséria, sobretudo na Ásia, na outra ponta os ricos ficam cada vez mais ricos. Já a classe média —os 40% “do meio””— vai sendo espremida entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos.
Reagindo à perda de status, especialmente no Ocidente, onde 85% da população de alta renda se concentra, a classe média recorre cada vez mais a líderes populistas que prometem trazer o passado de volta com discursos radicais e soluções simples.
Governantes assim chegaram ao poder ou se reelegeram em países como EUA, Rússia, Itália, índia, Polónia, Filipinas, Brasil, Turquia e Hungria. França, Alemanha, Espanha e Suécia viram lideranças desse espectro crescer, o Reino Unido votou pela saída da União Europeia e a direita avançou no Parlamento Europeu.
Outros sintomas da precarização da classe média seriam a hostilidade à imigração, o protecionismo e dúvidas sobre a utilidade de órgãos multilaterais.
Com a renda nos emergentes se aproximando daquela nas nações ricas e com a desigualdade interna nos países em alta, o mundo volta à configuração do final do século 19, quando a ascensão do nacionalismo e do populismo levou aos conflitos do século 20.
Para especialistas, sem soluções multilaterais para a desigualdade no horizonte, as democracias liberais e o crescimento global permanecerão ameaçados.
REINO UNIDO, FRANÇA E ESPANHA
Antes do início dos anos 1990, a paisagem do noroeste da Inglaterra era dominada pelas chaminés de mais de mil fábricas, a maioria de tecelagens do auge da revolução industrial, no século 19.
Foi uma época em que as primeiras máquinas a vapor multiplicaram a geração de bens e de fortunas. Primeiro na Inglaterra. Depois, no resto da Europa, nos EUA e em outras partes do mundo.
Em seu apogeu, Oldham, na Grande Manchester, foi um dos locais mais dinâmicos da Terra, conectado ao resto do mundo por ferrovias que chegavam ao porto de Liverpool.
Hoje, a cidade de 100 mil habitantes parece um museu. Sobraram poucas chaminés e, com ares de decadência, centenas de pequenas casas de tijolos escuros que abrigavam os operários do passado.
Na Union Street, uma das ruas principais, o ponto mais movimentado parece ser um centro para desempregados. É ali que Brian Melling, 65, busca trabalho há quatro anos.
Ex-motorista de caminhão, seu padrão devida decaiu junto com as indústrias de Oldham, afetadas por uma globalização que encontrou salários mais baixos na Ásia e expulsou gente jovem e educada para as grandes cidades.
Antes, Melling podia, como diz, “ter motocicleta, fumar, beber e fazer o que quisesse. E economizava dinheiro”.
Hoje, vive em um apartamento quase todo subsidiado por uma fundação privada e passa os dias com 73 libras por semana (R$ 340) do seguro desemprego. Para economizar, come enlatados de baixa qualidade, lanches frios, frutas e bebe muito chá.
Melling e as pessoas de sua região foram as maiores responsáveis pela aprovação do brexit em 2016. Numa vitória apertada, 51,9% dos que votaram no referendo optaram por sair da União Europeia e reconquistar a opção de fechar o Reino Unido à imigração e a produtos estrangeiros.
Em Oldham, não só mais pessoas votaram no referendo como o apoio ao brexit atingiu 61%, taxa que se repetiu em toda a Grande Manchester. Na Grande Londres, mais dinâmica e cosmopolita, deu-se o contrário: 60% votaram pela permanência.
A ex-primeira-ministra britânica Theresa May acabou renunciando ao não concluir o brexit, e pode ser substituída pelo ex-prefeito de Londres Boris Johnson, defensor da saída mesmo sem um acordo com a União Europeia.
“Votei pelo brexit porque estávamos melhor antes do mercado comum. Empobrecemos muito e todos têm nos tratado muito mal”, diz Melling.
Em sua opinião, o radicalismo na Europa se alimentando desse sentimento. “Veja os “coletes amarelos” na França. As pessoas querem um basta.”
Para David Soskice, coordenador do International Inequalities Institute, em Londres, enquanto moradores de grandes centros têm se saído melhor por serem mais educados e globalizados, os do interior perdem renda e status.
Isso explicaria tanto o brexit quanto Donald Trumpnos EUA, onde estados empobrecidos do meio-oeste garantiram a vitória do republicano.
Mas o principal motor do radicalismo e do populismo, sobretudo no Ocidente, seria o empobrecimento da classe média — resultado da mistura de globalização, avanços tecnológicos, melhor educação concentrada no topo e financeirização do capital em detrimento da produção física que gera empregos.
Cada vez mais distante dos ricos acima e pressionada por serviços públicos piores e gastos maiores, sobretudo com moradia, é a classe média quem se volta a partidos eurocéticos, anti-imigração e de extrema direita.
“São pessoas preocupadas em não cair no poço da pobreza, ou que isso possa acontecer aos seus filhos. Elas votam pensado nisso”, diz Soskice.
Foi esse tipo de decadência pessoal que levou Mark Hodgkinson, 58, a marchar recentemente durante 14 dias e por 450 km em defesa do brexit, do interior da Inglaterra até o Parlamento em Londres.
Morador de Rochdale, ao norte de Manchester, o vendedor de produtos Online viu seus dois filhos e de amigos fugirem para cidades maiores como Londres atrás de oportunidades que não existem mais onde viviam.
“Há 20 anos havia muito trabalho aqui. Hoje, os jovens não têm chances”, diz.
O economista Branko Milanovic, autor de “Global Inequality” (Harvard University Press), diz que o que existe hoje é um “voto de protesto” contra a falta de programas coerentes para estancar o encolhimento da classe média.
Segundo ele, o fenômeno tornou-se estrutural e poderá, no futuro próximo, afetar o consumo, principal motor do crescimento econômico.
“Para ficar num exemplo extremo, haveria demanda por um automóvel Maserati de um lado, e uma imensa demanda por arroz e pão, de outro. Isso não significa que não haverá crescimento, mas que ele será de um tipo diferente.”
Para Martin Wolf, comentarista-chefe no j ornai britânico Financial Times, respostas como o brexit, Trump e outros radicalismos “não farão nada para resolver o problema”.
“Isso só vai piorar as coisas, encorajando pessoas a culpar algum outro grupo, muitas vezes mais vulnerável”, diz, em referência à imigração.
Entre todas as regiões do mundo, contudo, é na Europa Ocidental onde a desigualdade de renda ainda cresce mais devagar, embora ela também tenha tomado uma curva ascendente desde os anos 1980 —sobretudo pela crescente acumulação no topo.
No Reino Unido, o 1% mais rico dobrou a participação na renda nacional no período e hoje se apropria de cerca de 12% do total, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da equipe do economista Thomas Piketty, da Escola de Economia de Paris.
Abaixo do topo, porém, 500 mil britânicos decaíram nos últimos cinco anos e hoje vivem com renda mensal inferior a6o% da média nacional.
Eles são hoje 4 milhões de trabalhadores (1 em cada 8) com uma renda mensal inferior a 1.100 libras (R$ 5.170).
Isso os classifica como pobres, segundo a Joseph Rowntree Foundation a partir de um dos critérios da União Europeia.
Esse empobrecimento coincidiu com cortes de mais de 30 bilhões de libras (R$ 140 bilhões) em benefícios sociais no Reino Unido desde 2010.
Isso contribuiu para dobrar, por exemplo, a procura pelos Food Banks (bancos de alimentos) a partir de 2013.
“Em 2018, ajudamos quase 8.000 pessoas. Há sete anos, quando começamos, eram cem”, diz Lisa Leunig, 52, chefe do Food Bank de Oldham.
Em todo o Reino Unido, só no ano passado foram distribuídas 1,4 milhão dessas cestas montadas com doações —quase o dobro na comparação com cinco anos atrás.
Quando a Folha visitou o FoodBank de Oldham, Katherine Storor, 33, estava lá com o filho. Ex-funcionária de uma tecelagem que fechou e hoje empregada em uma loja ganhando 250 libras por semana (R$ 1.170), ela recorre ao sistema em emergências.
Katherine mora com a mãe porque não consegue alugar uma casa por menos de 600 libras (R$ 2.800) por mês.
Do outro lado do canal da Mancha, a França vive uma história parecida.
Nos últimos dez anos, cerca de 630 mil pessoas passaram a viver na pobreza. São considerados agora pobres 5 milhões de pessoas, ou 8% da população, segundo o Observatório das Desigualdades.
O organismo considera pobres os que vivem com menos da metade do salário médio francês, ou cerca de 855 euros (R$ 3.600) —o equivalente ao aluguel de um apartamento de 20 m2 em Paris.
Usando a mesma régua do Reino Unido (menos de 60% da renda média), os pobres na França saltariam a 8,8 milhões, ou 14% da população.
Na última década, o total de atendidos por programas de alimentação praticamente dobrou no país, para 4,8 milhões.
Embora a França ainda apresente níveis de pobreza equivalentes à metade da média europeia, seu aumento vem rompendo uma histórica tendência de queda.
Segundo o Relatório da Desigualdade Global, após os “gloriosos 30 anos” (1950-1983) que elevaram a renda média de 99% da população em 200% (e a do 1% mais rico em 109%), houve uma reversão.
A partir dali, enquanto o crescimento acumulado dos rendimentos da metade mais pobre foi de 31%, no decil mais rico ele aumentou 49% —e chegou a 98% no 1% do topo.
Com salários e ganhos de capital crescentes, os 10% mais ricos recebem hoje, em média, 109 mil euros por ano (R$ 460 mil). Na metade mais pobre, o valor médio é de 15 mil euros (R$ 63 mil).
Os protestos dos “coletes amarelos” na França são considerados em parte produto da desigualdade e teriam se originado, por um lado, pelos cortes de impostos para os mais ricos adotados pelo presidente Emmanuel Macron.
Por outro, pelo aumento da taxação sobre combustíveis no fim de 2018, quando as manifestações eclodiram.
“Quando as pessoas viram suas contas aumentando e outros sendo beneficiados, houve um grande descontentamento”, diz Lucas Chancel, coordenador do Relatório da Desigualdade Global.
A menor taxação sobre os ricos na França, acredita, só aumentará a desigualdade.
Moradora em Saint-Denis, ao norte de Paris e um dos locais mais empobrecidos da França, a designer Valery Voyér, 45, afirma que se juntou aos “coletes amarelos” como forma de protesto contra as desigualdades e a precarização do trabalho em seu país.
“Muitos estão lá porque a situação é trágica, insustentável. Outros, por solidariedade aos demais”, afirma.
Valery diz ser obrigada a trabalhar ao menos 50 horas semanais (a jornada oficial na França é de 35 horas) para “manter um certo nível”.
Como resposta às manifestações que já duram mais de seis meses, Macron anunciou a redução no imposto sobre o rendimento para 15 milhões de famílias, uma ajuda de até 1.000 euros (R$ 4.200) para pessoas de baixa renda e a suspensão do fechamento de hospitais e escolas até 2022.
O impacto das medidas no Tesouro francês será de 17 bilhões de euros (R$ 71 bilhões).
De olho nos manifestantes mais identificados com políticos nacionalistas, Macron também defendeu políticas mais duras contra a imigração, em um aceno aos cada vez mais numerosos simpatizantes da direita francesa.
Neste cenário de radicalismo, a Espanha surpreendeu em abril quando os socialistas venceram as eleições parlamentares, embora sem conquistar sozinhos a maioria.
Nomesmopleito.no entanto, foi confirmada a entrada no Parlamento do Vox, primeira legenda de ultradireita (e de viés populista) a chegar ao Congresso espanhol desde 1979.
“Há esse reflorescimento da direita. Fruto do desemprego e de pessoas vivendo de ganhos irregulares que lembram a pré-história”, diz Joan Babiloni, 62, diretor de fotografia e morador de El Raval, em Barcelona.
Desde a crise global de 2008-2009, a desigualdade na Espanha subiu, e os 10% mais ricos ficam hoje com mais de 30% da renda, ante os 26% divididos na metade mais pobre.
“A classe média espanhola sempre foi de trabalhadores ou pequenos empresários com um futuro. Isso acabou. Agora, só há medo entre nós, os precarizados”, diz Babiloni.