Em setembro de 2000, fui convidado a um seminário em Nova York dentro das comemorações do novo milênio pelas Nações Unidas. O evento, patrocinado pelo Global World Forum, de São Francisco, na Califórnia, reunia centenas de pessoas em diversas salas no Hotel Hilton, em Manhattan. Na sala onde eu faria minha participação, muitos jovens alguns sentados no chão, em frente à mesa. Antes que eu começasse a falar, um deles levantou e perguntou o que eu achava da ideia de internacionalizar a Amazônia, e acrescentou: “Não quero sua resposta como brasileiro. Quero que responda como humanista”.
Diante disso, eu falei que poderia considerar a hipótese de internacionalização da Amazônia se antes fossem internacionalizados todos os poços de petróleo, as armas nucleares, os museus, as cidades históricas, tudo de importante para a humanidade, inclusive as crianças pobres que morrem por falta de comida e remédio. Depois de citar o que deveria ser internacionalizado e as razões que justificassem essa opção, concluí dizendo: “Quando tudo isso for internacional, podemos discutir a internacionalização da Amazônia. Até lá a Amazônia é nossa e só nossa”. Essa fala teve uma grande repercussão, foi traduzida em muitos idiomas; inclusive incorporada em uma coletânea de grandes discursos por brasileiros.
Sempre achei que fiz uma boa conclusão, até o fotógrafo Sebastião Salgado, amigo há 50 anos, dizer que não gostava da conclusão, porque se não formos capazes de cuidar dos patrimônios da humanidade que estão no nosso território, não merecemos tê-los só para nós. Lembrei do Tião Salgado, ao ver o ministro general Heleno dando a impressão de que temos o direito de queimar a Amazônia, porque ela é nossa. Só nossa.
A Amazônia é nossa, mas é um patrimônio mundial. Sua destruição irresponsável, em nome do nacionalismo, é um holocausto verde ao sacrificar a humanidade inteira. Nenhum nacionalismo tem o direito de se opor ao humanismo, porque é imoral e é estúpido, indecente e insensato. Por isso, mesmo sendo nossa, devemos usar a Amazônia com responsabilidade planetária. Tanto quanto os donos do que há dentro de um apartamento não tem o direito de queimar seus móveis, porque têm responsabilidade condominial com os vizinhos.
A Terra é um condomínio de países. Cada um deles precisa ter o sentimento de sua relação com o resto do mundo, especialmente nos tempos em que a tecnologia disponível permite ao menor país desarticular o equilíbrio ecológico, ao explorar suas reservas de petróleo, destruir suas florestas, produzir bombas atômicas ou centrais nucleares. No mundo atual, na Era Antropocena do poder humano descomunal, nenhum país está isolado.
O presidente Bolsonaro comete grave erro diplomático e pecado humanista ao apontar para o presidente francês e para a chanceler alemã e lembrar que desde os romanos a Europa queima suas florestas e que, por isso, eles não têm autoridade para nos criticar quando nós queimamos a nossa Amazônia. Ele até poderia lembrar esse fato histórico, mas dizendo que na realidade atual, em que o equilíbrio ecológico está ameaçado, é hora de protegermos o meio ambiente. Deveria desafiar Macron e Merkel a reflorestarem o mundo; propor uma disputa para ver que país reflorestaria mais do que nós brasileiros; uma disputa humanista no lugar do holocausto verde que o general e o presidente parecem querer cometer em nome de um nacionalismo suicida.
Poderíamos desafiá-los a enfrentar Trump e Putin, que vão explorar petróleo no Polo Norte, e enfrentar o governo japonês que autorizou a caça às baleias; ao Macron desafiar que defina um prazo para desligar todas suas centrais nucleares, tal qual a Alemanha e a Itália fizeram; nos comprometermos a uma política indigenista humanista e desafiar a Europa a respeitar os imigrantes. Defender um pacto mundial, dentro do Acordo de Paris para que Rússia, Canadá, Congo preservem suas florestas.
A Amazônia é nossa, mas nós, brasileiros, temos a obrigação de entendermos que somos também humanos e humanistas, nacionalistas e inteligentes, e, portanto, devemos cuidar bem de nossas florestas, porque elas existem há mais tempo do que o Brasil e porque o mundo, do qual somos parte, precisa delas para sempre. Aprendi a lição do Tião Salgado e tento passá-la a outros, mesmo que generais e presidentes não estejam preparados para entender o quanto o nacionalismo suicida é anti-humanista, insensato e indecente. (Correio Braziliense – 16/07/2019)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)