O Brasil, como se sabe, está entre as nações que mais concentram renda no planeta. Números do IBGE, referentes a 2017, mostram que o rendimento per capita médio mensal, que considera renda do trabalho e da aposentadoria, além de itens como pensão, aluguel e transferência direta de renda de programas sociais como o Bolsa Família, foi de R$ 6.629 para os 10% mais ricos da população. Na parcela dos 40% mais pobres, restringiu-se a R$ 376 por mês. A diferença entre as duas faixas revela, portanto, que os mais ricos recebem 17,6 vezes mais que os mais pobres e isso nos define como sociedade. A distância, vexaminosa, tem aumentado. Apesar dos avanços civilizadores dos últimos 30 anos, nosso “pacto social” é claramente insuficiente.
As razões para a concentração de renda têm variadas explicações, desde o modelo de colonização, baseado na concessão de “capitanias hereditárias” pela coroa portuguesa, até o domínio do orçamento público por grupos de interesses específicos (das multinacionais que fabricam automóveis à burocracia estatal autóctone), passando pela ignomínia da escravidão, com a qual convivemos durante quase quatro séculos e, sob disfarces, mantemos como característica imutável do nosso caráter. Um país que há décadas vê 50 milhões de seus habitantes (público-alvo do Bolsa Família), o equivalente a quase 25% de sua população, vivendo em condições de miséria e sem condição alguma de emancipação é uma nação derrotada.
No Brasil de tanta iniquidade, todas, isso mesmo, todas as políticas públicas deveriam ter caráter distributivo. E toda e qualquer iniciativa que demande gasto público deveria ser avaliada uma vez por ano, por entidades independentes, para verificar se estão servindo ao propósito prometido. O Bolsa Família, por exemplo, é reconhecido internacionalmente como um programa social meritório. Ajudou a diminuir a miséria, mas não emancipou as famílias – o número de beneficiários atualmente é praticamente o mesmo de 2004, quando a iniciativa foi lançada.
No momento em que o Congresso Nacional começa a debater a reforma tributária, o tema da regressividade da carga de impostos que os brasileiros pagam volta ser discutida. Presidente da comissão especial que analisou e deu o texto final à reforma da Previdência aprovada em primeiro turno na Câmara, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) adianta que é forte a ideia de usar as mudanças do sistema tributário como uma oportunidade para enfrentar as desigualdades do país. A preocupação é válida.
Especialistas, como Everardo Maciel, secretário da Receita Federal nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, identificam no regime tributário nacional elementos que, de fato, contribuem para agravar a desigualdade de renda. Ainda assim, defendem que o problema da concentração seja enfrentado pela redefinição dos gastos.
Esta coluna relacionou temas que, muito provavelmente, serão tratados durante a tramitação da reforma tributária. Seriam os seguintes:
1. Pobre paga mais imposto que os ricos porque o sistema taxa mais o consumo do que a renda. Isso corre por existe uma miríade tributos incidindo sobre o consumo e o faturamento e os mais pobres gastam a maior parte de sua renda com consumo.
2. A tabela é progressiva nas alíquotas, mas se torna regressiva no geral porque permite dedução da base de cálculo dos gastos com educação (com limite) e saúde (sem limite);
3. A alíquota efetiva do Imposto de Renda no Brasil é baixa – de 23,3%, podendo ainda ser bem menor após deduções -, quando comparada à das nações de economia avançada;
4. O IR não precisa ser tema da reforma porque mudanças podem ser feitas por legislação ordinária. Everardo Maciel fez a reforma do IR em seus oito anos à frente da Receita Federal;
5. O Brasil criou um IVA, o ICMS, em 1967, com alíquota única para todos os Estados. O problema é que, em 1969, emenda à Constituição permitiu que Estados mexessem em alíquotas e base de cálculo, via Confaz;
6. Não se resolve o problema da concentração de renda via reforma tributária, mas, sim, por meio do gasto. Decisões de governos eleitos pelo povo é que têm o poder de distribuir renda. Governantes são eleitos para isso: decidir onde alocar os sempre escassos recursos pagos pelos contribuintes. Cabe ao eleitor escolher quem considera melhor para essa tarefa. O eleitor define se quer um governante que invista mais em educação e saúde do que em áreas onde a presença do Estado não é ou nunca foi crucial;
7. Como a Constituição de 1988 criou atribuições para a União, mas não lhe deu as devidas receitas, o governo federal criou contribuições sociais, como a Cofins, cuja a receita não precisa ser distribuída a Estados e municípios. Os Estados, por sua vez, majoraram ao longo do tempo as alíquotas do ICMS e promoveram guerra entre si para atrair investimentos.
Novos atores
Marcelo Ramos é um destacado integrante da elite de parlamentares que começa a emergir no Congresso. O Parlamento não é dominado por um ou mesmo por dois ou três partidos políticos. Estes já foram mais expressivos em número de representantes.
A fragmentação partidária intensificou-se durante a prevalência do chamado “presidencialismo de coalizão”, marca do pragmatismo dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010), mas sempre existiu. O fenômeno acaba por aumentar a importância de parlamentares como Ramos, que, isoladamente, influencia com sua liderança os votos de dezenas de deputados.
No momento em que o Congresso assume protagonismo inédito – e, diga-se, positivo – na condução das reformas institucionais, Ramos desponta como liderança a ser acompanhada. Comunista na juventude, não teve receio de liderar comissão que tratou de tema considerado “impopular”. (Valor Econômico – 17/07/2019)
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras – E-mail: cristiano.romero@valor.com.br