Governo estranho este. O que Bolsonaro propõe hoje vai na direção oposta do Código de Trânsito Brasileiro, pelo menos tal como o votamos. É um governo conservador que se lixa para o princípio de precaução, o que poderia ser uma ponte para o debate. É um governo liberal pouco atento à vida das pessoas, embora queira livrá-las das garras do Estado.
Lembro-me dos debates sobre o Código de Trânsito. O relator era um deputado de São Paulo, que conhecia bem o tema. Chama-se Ary Kara e aceitou emenda para que os carros populares tivessem airbag. Fomos derrotados porque a indústria achava, na época, que isso reduziria vendas.
Bolsonaro deu uma grande mexida no setor. Propõe abolir a multa para quem não usa cadeirinha das crianças, ampliar os pontos para suspensão da carteira, afrouxar as regras para uso de capacete em moto. Isso entra em choque com a experiência cotidiana. No Norte e Nordeste, há uma abundância de motos e uma escassez de capacetes.
Numa das primeiras viagens para a TV, passei pelo interior do Maranhão e constatei como algumas UTIs estavam cheias com acidentados de moto. E nem todos os hospitais do país têm neurocirurgião.
Outro dia, no interior do Piauí, mostrei como é a saída da escola. Os pais vêm de moto e recolhem as crianças, às vezes mais de uma na garupa. Nem sempre usam capacetes. Em alguns casos, usam, mas não trazem o capacete das crianças.
Isso sem contar no Norte e Nordeste o grande número de bebês que é transportado em moto. Documento isto com frequência.
Já havia manifestado minha posição favorável aos radares. Sou sensível à possibilidade de multas injustas. Mas acho que existe um canal para contestá-las.
Bolsonaro está reduzindo multas porque acredita no caminho pedagógico. Mas é uma contradição acreditar nesse caminho e, subitamente, afrouxar as punições. A mensagem que passa, já estamos falando de pedagogia, é de que as infrações não são graves.
Compreendo que existam muitos motoristas que serão beneficiados, que Bolsonaro procura não apenas atender aos seus impulsos, mas também a muitos dos seus eleitores.
Mas é um governo meio doido. Ao mesmo tempo em que apresenta uma política de drogas repressiva, com a internação obrigatória, amplia os prazos para exames toxicológicos em motoristas profissionais.
No passado, tive a esperança de que os governos convencessem a indústria de motos a gastarem parte de seus lucros em campanhas e cursos de segurança. Isso já acontece em alguns países.
Mas a vida tem se desvalorizado nos últimos tempos no Brasil, a própria política de segurança potencialmente pode produzir um número maior de mortes.
Não há outro caminho a não ser enfrentar as estradas e conviver com um perigo ainda maior. Perigo que aumenta não só no trânsito, como na mesa. Com conhecimento, e algum dinheiro, ainda é possível comer algo saudável, num país em que oito perigosos agrotóxicos são liberados.
Uma grande rede de supermercados sueca iniciou um boicote aos produtos brasileiros, precisamente por causa das decisões do governo na liberação de agrotóxicos.
Os desastres com moto já são campeões nas estatísticas. A saída é continuar documentando acidentes, fazendo as contas. Os liberais que se apoiam apenas na liberdade pessoal de assumir os riscos se esquecem de algumas relações que estabelecemos no trânsito.
Todos estamos em jogo. Desastres acontecem não só com os que têm opções imprudentes. Levam os outros também. As UTIs superlotadas deixam gente de fora, postergam cirurgias. Conservadores de fato compreendem isso, da mesma forma, aos liberais de fato não escapam essas interconexões.
Este é um governo estranho. Eleito por 57 milhões de brasileiros, parece querer levar o Brasil para um tempo que não existe mais e que talvez nunca tenha existido, exceto na fantasia de Bolsonaro.
Às vezes, você espera um Messias e recebe um Jim Jones, aquele reverendo que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.
Não quero dramatizar. É preciso apenas ficar de olho. Costumamos punir gestão temerária de bens. Por que não dedicar um tempo para avaliar uma gestão temerária de vida? Naquela, a vida ceifada por caminhos indiretos. Nesta, a vida apenas, sem apelação. (O Globo – 10/06/2019)