Na edição de sexta-feira, dia 21, a primeira página do Valor destacou histórias em que os protagonistas são quatro generais, um fato inusitado desde o início da Nova República, em 1985, quando, depois de 21 anos, os militares deixaram o poder. Com a ascensão do presidente Jair Bolsonaro, capitão da reserva, muitos fizeram o caminho de volta, mas, desta vez, pelas mãos da democracia – a maioria dos oficiais é da reserva, alguns foram nomeados ministros e sua missão é idêntica à dos quadros civis de qualquer administração. Falar, portanto, em militarização de um governo eleito não faz sentido.
Os militares reservistas ocupam cargos de natureza política. Não estão ali em missão das Forças Armadas. Dos quatro generais, apenas um – Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, atual comandante do Comando Militar do Sudeste – não é da reserva. No dia 4 de julho, ele assumirá, sem farda, posição estratégica no núcleo do poder: ministro da Secretaria de Governo, responsável pela articulação política com o Congresso Nacional.
O general Ramos substituirá Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido no dia 13 pelo presidente, que não teria dado nenhuma explicação para a dispensa abrupta. Um dos militares mais populares do país, o general Santos Cruz foi capa da revista “Época”, que às sextas-feiras circula encartada no Valor e em “O Globo”. Alvo de ataques ferozes do filósofo Olavo de Carvalho, bolsonarista sem cargo mas muito influente na capital da República, e de três filhos políticos do presidente, Santos Cruz desceu a rampa do palácio afogado em mágoas.
Na seção “À Mesa com o Valor “, igualmente na edição de sexta-feira, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e até este momento o militar mais próximo de Bolsonaro, mostrou-se muito à vontade no papel de líder do grupo de militares que gravita no núcleo do poder. Estar no “olho do furacão” é sua sina, disse ele sobre sua posição estratégica – entre muitas outras funções, era ajudante de ordens em 1977 do então ministro do Exército, general Sylvio Frota, que planejou reverter a abertura política que o então presidente Ernesto Geisel começava a pôr em prática, ainda que devagarinho; em 1985, assistiu de perto, como auxiliar de outro ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, a conspiração, abortada por seu chefe, para impedir a posse de José Sarney na Presidência da República.
Com a chegada do general Ramos, a vida do poderoso general Heleno deve mudar. Ex-assessor parlamentar do Exército, Ramos transita bem pelos corredores do Congresso. Amigo do presidente Bolsonaro desde o início da década de 1970, quando suas mulheres se frequentavam e os filhos eram próximos, o futuro ministro concentrará a articulação política em sua Pasta, em vez de dividi-la com a Casa Civil, como funcionou durante a breve gestão de Santos Cruz.
A Secretaria de Governo cresceu, portanto, para receber o general Ramos. É um sinal importante no castelo de cartas da capital federal – o reconhecimento do governo de que, sem um ministro forte, dotado de poder real (caneta para fazer nomeações e poder de liberar verbas orçamentárias), lidar com partidos e congressistas para aprovar ou derrubar leis é tarefa inglória. Até poucos dias atrás, Ramos usava farda e era pouco conhecido em Brasília. No dia 4, desembarca na capital como um novo protagonista. Na corte, quem tem ou cobiça o poder quererá conhecê-lo rapidamente.
Na sexta-feira pródiga em informações sobre militares ocupando cargos com poderes civis, o general concedeu sua primeira entrevista à repórter especial Maria Cristina Fernandes, do Valor. Cris arrancou do general Ramos informações valiosas para quem ambiciona decifrar o governo Bolsonaro, uma novidade tão surpreendente na política nacional quanto a ultrajante derrota do Brasil para a Alemanha, por 7 a 1, na Copa do Mundo de 2014. Editora de Política deste jornal por 15 anos, a jornalista obteve de Ramos, também, “a frase das frases” nesta quadra da vida na Ilha de Vera Cruz: “O presidente não é tutelável”.
Trata-se de mensagem de quem está chegando com prestígio e a confiança do chefe. Jair Bolsonaro era um político subestimado na Câmara dos Deputados, onde cumpriu sete mandatos consecutivos. Ninguém o levava a sério. Seu jeitão elefante-em-loja-de-cristal quando fala de costumes, sempre muito conservador, reforça a ideia de que o presidente não é sério. Mas Bolsonaro venceu a eleição presidencial, desalojando do poder os dois partidos que vinham se revezando no comando do país desde 1994. Não importa: ele continua sendo subestimado.
Se até agora coube ao general Heleno, assessorado pelo general Villas-Bôas, exercer ascendência sobre Bolsonaro, mantendo-o sob razoável controle – para controlar crises que surgem do nada em consequência de arroubos do presidente -, e proteger áreas importantes do governo, como a agenda liberal e reformista da equipe econômica, além da autonomia informal do Banco Central, a configuração do núcleo do poder passará por mudanças com a chegada de um general da confiança estrita do chefe da República.
Heleno e seu grupo de generais comandam a artilharia anti-mísseis contra Olavo de Carvalho, os filhos de Bolsonaro e bolsonaristas em geral, que vivem em permanente litígio com todos os que se aproximarem do presidente e tiverem alguma ascendência sobre ele. Com Ramos, o poder central será redimensionado. Se Santos Cruz foi abatido pelos bolsonaristas, isso mostra que o grupo militar palaciano já começou a enfraquecer. Qual é o risco envolvido? Heleno e seu grupo são fiadores, mais do que Bolsonaro, da agenda econômica que o ministro Paulo Guedes tenta implantar para tirar o país de seis anos de crise.
Na democracia brasileira, os partidos políticos são fracos, o que obriga presidentes eleitos a montar coalizões, geralmente com mais de uma dezena de partidos, para governar. As maiores bancadas na Câmara são as do PT e do PSL, ambas com 54 deputados, apenas 10,5% do total de parlamentares daquela Casa. Governar com espectro político tão amplo fez com que os presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, líderes de centro-esquerda, governassem na companhia de uma miríade de partidos de direita e de centro-direita. Reúnem-se nas falsas coalizões interesses inconciliáveis. E, aí, sucedem anomalias, como o impeachment de Dilma ter se dado por obra de um aliado – Eduardo Cunha, presidente da Câmara. (Valor Econômico – 26/06/2019)
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras – E-mail: cristiano.romero@valor.com.br