Não há dúvida de que o material sob posse do site Intercept tem de ser periciado. Como acusar suspeição de alguém — no caso, o ex-juiz Sergio Moro —sem comprovar a integridade do arquivo que se quer como fundamento à imputação? A chancela de autenticidade do conjunto é de interesse público tanto quanto o conteúdo dos diálogos; e a incerteza a respeito é mais um elemento a agravar o ambiente de insegurança, de instabilidade, que refreia a capacidade produtiva do país.
Até que a veracidade das mensagens seja confirmada, sobre seu manuseio editorial — e editorializado — sempre pairará o senão que decorre da possibilidade de fraude.
Tampouco se pode absorver as informações ora publicadas sem antes refletir sobre a natureza de um jornalismo cuja atividade se confunde com o ritmo de um folhetim. Qual a ideia? Liberar capítulos até conseguir abalar o governo, como se o tremor deste não fosse também do Brasil? A falta de transparência no manejo do pacote autoriza essa indagação.
Não se deve tapar os olhos para o que já configura um padrão: divulgações ministradas a conta-gotas e de modo reativo, como resposta mesmo aos movimentos dos agentes da operação Lava-Jato, tal qual fossem não objetos de uma reportagem impessoal, mas adversários na cancha da política. Incomoda-me a ideia de o jornalismo ser exercido como um jogo, e um em que o blefe, talvez a ameaça, seja recurso editorial.
Ressalva nenhuma, porém, mitigará — não nesta coluna —a leitura do que vai nas conversas entre Moro e Deltan Dallagnol. Não é bom. E não pode ser recebido como surpreendente. Há uma história aí. Escrevo com tranquilidade a respeito: nunca relativizei a gravidade de haver o então juiz Moro, ainda em 2016, levantado o sigilo de telefonemas entre Dilma Rousseff e Lula para deliberadamente interferir no processo político. Aquilo fora uma exorbitância. Glenn Greenwald decerto concordava. Havia já um padrão — também um padrão — nos procedimentos da Lava-Jato. Um paradigma de militância sob o qual, para o fim de combater a corrupção, seria normal um magistrado, falando a um procurador, referir-se à atividade da defesa, parte numa ação que julgava, como “showzinho”.
A circunstância de haver bandidos pretendendo se beneficiar das revelações não torna os fatos inexistentes nem transforma erros em acertos. Mais do que evidenciar a inquestionável ascendência de um magistrado sobre membros do Ministério Público, como se houvesse hierarquia entre eles, o exame dos diálogos mostra um juiz que tomara lado. É inequívoco. Não me sinto apto, contudo, para avaliar quais as possíveis consequências jurídicas dessa constatação.
Interessa-me, neste artigo, olhar para o terreno em que tudo isso, como se fosse um avanço civilizacional, desdobrou-se. Trato, aqui, do espírito do tempo —o que anima tanto a força-tarefa de Curitiba quanto a do Intercept. O fenômeno lavajatista, subproduto jacobinista da Lava-Jato, é um marco revolucionário, impositivo, nas relações sociais do Brasil. Não faço elogio. Sob o discurso influente do hiperativismo, abriu-se —institucionalizou-se — a janela para a anarquia de meios em prol de uma causa, o vale-tudo justiceiro, aquele que aponta para o estado policial, não raro avalizado pelo Supremo e com histérica defesa de certo jornalismo.
Como já escrevi: se um togado pode extrapolar, se um procurador pode, todo mundo pode. Sempre haverá um hacker para desbravar nova fronteira. Porque causa, ora, todo mundo tem uma… Greenwald tem. Impossível prever onde isso vai parar.
A vida pública entre nós —está dado —foi arrestada pela cultura do denuncismo, que prospera facilmente numa sociedade em que o ressentimento é categoria de pensamento e a figura do vingador, modelo de conduta moral. A marcha é pública. O advento positivo da ferramenta conhecida como delação premiada, por exemplo, logo deturpou-se em máquina moedora de reputações —a palavra de um bandido confesso, sujeito em busca de se safar, de repente convertida em prova per se contra outrem não raro nem sequer investigado. A ascensão fulminante da indústria do vazamento seletivo de dados sigilosos alimentou a forja de linchadores, amolou a adaga do justiçamento nas redes e, banalizando, até criminalizando, o devido processo legal, antecipou-se para condenar indiscriminadamente ao mesmo tempo em que esculpia—elegia—heróis e mitos.
Mas, repito, sendo impossível prever onde isso parará, acrescento que era previsível supor, com o mínimo de prudência, que não haveria poupados —nem os heróis nem os mitos, e nem os filhos dos mitos. Aqui estamos. E quem se deliciava quando a rajadada barbárie enchia a própria vela ideológica agora que rebole para reclamar e disfarçar a cara de pau do oportunismo. (O Globo – 25/06/2019)