André Lara Resende: Brasil de hoje e o conservadorismo vitoriano

“But, soon or late, it is ideas, not vested interests, which are dangerous for good or evil”

J.M. Keynes

1. Sugestão controversa

A economia não dá sinais de que sairá tão cedo do atoleiro em que se encontra. Há consenso de que as finanças públicas estão em frangalhos. Embora o diagnóstico seja praticamente consensual, há discordância quanto à melhor forma de enfrentar o problema e repor a economia nos trilhos. Em uma série de artigos recentes, sustento que a opção por equilibrar o orçamento a curto prazo é um equívoco. Em conjunto com uma reforma que garantisse o reequilíbrio a longo prazo da Previdência, deveria-se organizar um ambicioso programa de investimentos públicos de infraestrutura e uma revisão simplificadora da estrutura fiscal para estimular o investimento privado. Para isso, seria preciso abandonar o objetivo de equilibrar imediatamente as contas e aceitar o aumento da dívida por mais alguns anos enquanto a economia se recupera.

Ao sugerir que tentar o equilíbrio orçamentário no curto prazo é contraproducente, pois agravará a recessão e poderá levar ao aumento da relação entre a dívida e o produto interno, provoquei indignação. A visão dominante entre os analistas financeiros é que o governo não tem como manter as suas despesas, pois as fontes de financiamento, seja através dos impostos, seja do endividamento, se esgotaram. Seria imperioso equilibrar o quanto antes o orçamento e reduzir o endividamento, sob risco de asfixiar os investimentos privados e levar a economia ao colapso. O argumento é duplamente falacioso. Primeiro, porque desconsidera o fato de que a União, como todo governo que tem uma moeda fiduciária, não tem restrição financeira. Segundo, porque pressupõe que a economia esteja próxima do pleno emprego.

2. Velhas falácias

O primeiro ponto, de que o governo não tem restrição financeira, é o mais controverso. Embora não seja novo – muito pelo contrário, tem uma longa tradição na história da teoria monetária, desde Henry Thornton e Thomas Tooke nas controvérsias monetárias do século XIX na Inglaterra, passando por Knut Wicksell e Georg Knapp no início do século XX -, foi ofuscado pela adoção na prática da visão metalista de que a moeda deveria ser sempre lastreada num ativo real. O padrão-ouro, segundo o qual a moeda deve ser conversível em ouro, predominou até o fim do século XIX. Depois de provocar graves desajustes na primeira metade do século passado, foi finalmente abolido na conferência de Bretton Woods, em 1944. A teoria monetária predominante, no entanto, não se reformulou, não se adaptou para refletir o fato de que a moeda tinha passado a ser exclusivamente fiduciária.

A Teoria Quantitativa da Moeda, predominante até o final do século XX, substituiu o lastro metálico da moeda pela base monetária, que deveria ser controlada pelos bancos centrais, mas manteve inalterada a estrutura lógica do padrão-ouro. Nos anos 90, quando ficou evidente que os bancos centrais não controlavam a base monetária, mas sim a taxa básica de juros, a Teoria Quantitativa foi finalmente aposentada. Substituída por metas para a inflação e uma regra heurística para a taxa básica de juros, a chamada Regra de Taylor, a teoria monetária quantitativista saiu de cena, mas deixou intacta a noção de que o governo não tem como se financiar sem desrespeitar os limites ditados pelas reservas em ouro ou pela base monetária.

A compreensão de que, se a moeda é fiduciária, o governo não tem restrição financeira, ressurgiu recentemente, com o destaque adquirido pela chamada Moderna Teoria Monetária. Embora seja uma mera consequência lógica do sistema monetário fiduciário, há uma enorme resistência a aceitar que o governo não tenha restrição financeira. Como já tratei do assunto em artigos anteriores, não pretendo voltar aqui ao tema.

Passemos então ao segundo ponto falacioso: o de que os investimentos públicos concorrem e inviabilizam os investimentos privados. As palavras de John Cochrane, hoje no Hoover Institution, em Stanford, e no Cato Institute, dois dos mais influentes centros conservadores dos Estados Unidos, que recentemente têm defendido teses monetárias menos ortodoxas, são exemplares: “Cada dólar de aumento no gasto do governo deve corresponder a um dólar a menos no gasto do setor privado. Os empregos criados pelo estímulo dos gastos públicos são compensados pelos empregos perdidos devido à redução dos gastos privados. Pode-se construir estradas no lugar de fábricas, mas o estímulo fiscal não nos pode ajudar a construir mais das duas. Esta forma de ‘crowding-out’ é pura contabilidade e não depende de nenhuma hipótese a respeito de percepção ou de comportamento”.

O governo precisa sempre equilibrar as suas contas para não tomar o espaço dos investimentos privados e provocar inflação. Ao afirmar que se trata de pura contabilidade, independente de hipóteses comportamentais, pretende-se dar validade universal à tese de que os gastos públicos expulsam os gastos privados. Omite-se o fato de que os gastos públicos só concorrem com os investimentos privados quando há pleno emprego. A tese é fetivamente “pura contabilidade” nos modelos que desconsideram a possibilidade de que a economia possa não estar no pleno emprego, mas falsa quando há capacidades ociosas. As hipóteses comportamentais estão embutidas no modelo equilíbrio competitivo subjacente ao argumento. Quando há desemprego e capacidade ociosa, os investimentos públicos, sobretudo em infraestrutura, são complementares e estimulam o investimento privado.

3. O conservadorismo vitoriano

O argumento de que o orçamento deve estar sempre equilibrado, para não levar à emissão de moeda sem lastro e provocar inflação, foi dominante até o início do século passado, enquanto perdurou o padrão-ouro e a visão da Inglaterra vitoriana ditava as regras sobre a boa disciplina fiscal. A Constituição vitoriana determinava que o orçamento fiscal deveria ser anualmente equilibrado, com as despesas públicas integralmente cobertas pelas receitas tributárias, para evitar que o Estado viesse a “debase de currency”, isto é, reduzir o lastro metálico da moeda.

Essa visão, de que o Estado deveria ser contido, para evitar que viesse a corromper a moeda e asfixiar o setor privado, passou a ser questionada no início do século XX. Os gastos e a dívida pública, sempre e em toda parte, aumentam quando um país entra em guerra. Com as guerras napoleônicas, no início do século XIX, a Inglaterra se viu obrigada a abandonar a conversibilidade da moeda em ouro. O período de inconversibilidade provocou o primeiro grande debate monetário entre as correntes metalista e fiduciária que estão até hoje por trás de grande parte das controvérsias macroeconômicas.

Na primeira metade do século XX, depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), mais uma vez em consequência do esforço militar e das reparações de guerra, as economias europeias se confrontaram com graves desequilíbrios orçamentários e o acentuado crescimento da dívida pública. A discussão sobre como estabilizar a economia foi retomada. Na Inglaterra, a visão convencional, a favor da necessidade de equilibrar imediatamente as contas públicas, capitaneada pelo então secretário do Tesouro, sir Otto Niemeyer, ficou conhecida como a Visão do Tesouro.

Segundo a “Treasury View”, as contas públicas devem ser anualmente equilibradas, para evitar o aumento da dívida e a desvalorização da moeda. Os gastos públicos não se justificam, ao contrário, precisam ser cortados para abrir espaço para os investimentos privados. Anos mais tarde, em 1931, Niemeyer chefiou a missão ao Brasil, que ficou conhecida pelo seu nome, e fez recomendações na mesma linha. John M. Keynes surgia como o seu mais eloquente crítico.

No início da década 20, a “Treasury View” saiu vitoriosa e o governo inglês implementou um programa de corte agressivo dos gastos, sob a responsabilidade de Eric Geddes, que ficou conhecido como “o machado de Geddes”. O programa de austeridade fiscal levou a Inglaterra à recessão e elevou a dívida pública de 135% do PIB, em 1919, para 180%, em 1923. Em 1929, o debate voltou à tona, quando o candidato do Partido Liberal, David Lloyd George, propôs um ambicioso programa trienal de investimentos em infraestrutura, com o objetivo de reduzir o desemprego e relançar a economia.

O financiamento dos investimentos deveria ser feito através de empréstimos extraorçamentários. Keynes foi um entusiasmado defensor da proposta de Lloyd George, enquanto a defesa da austeridade fiscal ficou a cargo de um funcionário do Tesouro, Ralph Hawtrey, que ainda antes da Primeira Guerra tinha formalizado o conservadorismo fiscal vitoriano na “Treasury View”. Hawtrey recitava o mantra dos críticos dos investimentos públicos: ao tomar empréstimos para financiar gastos públicos, o governo retira do mercado de investimentos a poupança que iria financiar a criação de capital.

A oposição, nas palavras de Arthur Pigou, respeitado professor de economia política da Universidade de Cambridge, já tachava o argumento de falacioso, pois na recessão há capacidade ociosa e o capital está subutilizado. Mas a grande confrontação entre a velha e a nova visão macroeconômica aconteceu alguns anos depois, no início de 1931, quando Keynes foi indicado para a Comissão Mcmillan, sobre as causas da recessão.

As discussões com os técnicos do Tesouro e do Banco da Inglaterra, em maio de 1930, levaram à publicação da “Teoria Geral” de Keynes, em 1936. Com a revolução keynesiana, a visão vitoriana da “Treasury View”, a tese de que o Estado deve equilibrar o orçamento, independentemente das circunstâncias, foi substituída pela convicção de que as políticas monetária e fiscal podem e devem ser utilizadas para evitar prolongados períodos de desemprego e capacidade ociosa.

4. Uma revolução completa

Quase um século depois de ter sido derrotado, na teoria e na prática, o conservadorismo monetário e fiscal do século XIX deu a volta por cima e é hoje quem dá as cartas. Os excessos do keynesianismo têm culpa no cartório. A exagerada confiança na capacidade de sustentar a economia próxima ao pleno emprego terminou por provocar inflação e ressuscitar o quantitativismo monetário.

Sob a liderança de Milton Friedman e seus discípulos da Universidade de Chicago, a partir da década de 70, a contrarrevolução monetarista começou a ganhar terreno. Com ajuda da ignorância a respeito da história, estimulada pelo mito de que a fronteira da teoria econômica, à semelhança das ciências exatas, incorporaria todo o conhecimento, também o conservadorismo fiscal está de volta em plena forma.

Depois da crise financeira de 2008, apesar do sucesso dos programas altamente heterodoxos de QE dos bancos centrais, que ao contrário do previsto pela ortodoxia monetária, não provocaram inflação, as recomendações da tecnocracia internacional para os países endividados seguiram à risca os princípios vitorianos da “Treasury View”. Embora a crise tenha sido provocada pelo excesso de endividamento privado, a terapia recomendada foi a de corte dos investimentos públicos para abrir espaço para os investimentos privados.

O Fundo Monetário Internacional, imediatamente após a crise, ainda em plena recessão, falava em multiplicadores dos gastos públicos inferiores à unidade, ou seja, a expansão fiscal não seria capaz de estimular a economia – pelo contrário, a contração fiscal é que seria positiva. Alguns anos mais tarde, Olivier Blanchard, que foi economista-chefe do FMI, e Daniel Leigh reconheceram que suas estimativas estavam erradas, que o multiplicador fiscal era efetivamente “substancialmente acima de um”.

Argumentaram que o modelo de referência por eles utilizado com expectativas racionais indicava que a consolidação fiscal não deveria ter qualquer impacto recessivo. Infelizmente, a realidade não quis se adaptar ao modelo. Wolfgang Schauble, o ministro da Fazenda alemão que dava o tom na Comissão Europeia, cunhou a expressão “consolidação fiscal expansionista”, um perfeito oximoro para a macroeconomia keynesiana. A teoria e a prática da macroeconomia tinham completado assim uma revolução, no sentido geométrico do termo: deram uma volta de 360 graus.

O objeto de estudo da macroeconomia é a moeda e o orçamento fiscal, um tema evidentemente tão político quanto econômico. Como não poderia deixar de ser, as teses prevalecentes são altamente influenciadas pelas circunstâncias, pelas forças políticas e pelo clima intelectual. Ao contrário do que pretende, a teoria econômica não é uma fortaleza da racionalidade, contra o turbilhão dos interesses em jogo na formulação das políticas públicas. Como sustenta Robert Skidelsky em seu último livro, “Money and Government: The Past and Future of Economics” (2018), a história da teoria monetária e fiscal, longe da referência científica que proclama ser, é altamente ideológica.

O livro de Skidelsky, que é também autor da melhor biografia de Keynes, é uma erudita e equilibrada reflexão sobre a história da teoria macroeconômica. Sob os cânones do método científico, esconde-se uma inclinação ideológica silenciosa que oscila ao sabor das circunstâncias e das ideias dominantes. A teoria e a prática das políticas econômicas são moldadas pelas condições do momento, pelas questões que atraem a atenção e que os economistas decidem merecer ser objeto de estudo. A perigosa homenagem prestada pela teoria econômica ao poder é torná-lo invisível. Teses formuladas como científicas dão a interesses específicos um toque ilustrado. Como sustenta Skidelsky, nada mais agradável aos homens práticos do que encontrar os seus preconceitos travestidos de ciência.

5. A atração dos extremos

Há alguns anos, num jantar em São Paulo, ouvi de Vito Tanzi, o economista italiano que durante muitos anos chefiou o departamento de política fiscal do FMI, uma história reveladora. Ao fim de uma conferência no Canadá, no fim dos anos 40, jovens economistas convertidos ao keynesianismo defenderam com entusiasmo uso agressivo da política fiscal
para assegurar o pleno emprego e resolver todo tipo de problema. Keynes, ao fim da conferência, disse ter concluído que o único não keynesiano na sala era ele.

A tendência a levar a tese ao paroxismo, a fazer uma caricatura de um argumento complexo e sofisticado, sempre existirá. Como demonstrou a psicologia comportamental, diante de argumentos contraditórios, confrontados com uma sobrecarga cognitiva, tende-se a buscar refúgio em atalhos mentais simplistas. O radicalismo e o dogmatismo, seja ele qual for, de um extremo ao outro, é muto mais atraente do que a racionalidade ponderada. As posições extremas são mais fáceis de ser compreendidas, exercem um fascínio sobre os convertidos que as tornam impermeáveis à argumentação racional. Toda tese matizada, por não se encaixar nos moldes inflexíveis dos radicalismos, é interpretada como uma ameaça e é mais fácil de ser combatida se transmutada numa caricatura à semelhança do inimigo conhecido.

Volto ao Brasil de hoje. Deficitária há décadas, a Previdência é o principal fator de desequilíbrio das contas públicas. A combinação de condições muito favoráveis para os corporativamente organizados com o rápido envelhecimento da população projeta um déficit crescente que ameaça absorver grande parte da receita tributária. Sem uma revisão do sistema, também a União, como já ocorre na maioria dos Estados, se verá diante da situação em que as despesas com a Previdência praticamente exaurem toda a receita orçamentária.

Para que o Estado tenha capacidade de investir e de fazer uma política fiscal contracíclica, é imperioso que as suas despesas correntes estejam sujeitas a um limite institucional. Justamente porque a moeda fiduciária não impõe uma restrição financeira ao Estado emissor, uma restrição institucional inteligente faz sentido para evitar gastos irresponsáveis e improdutivos. A “Regra de Ouro”, a exigência de que os gastos correntes sejam cobertos pela receita tributária, é uma limitação institucional, introduzida pelo conservadorismo fiscal vitoriano no início do século XX, perfeitamente compatível com o keynesianismo ilustrado.

Os investimentos em segurança, educação, saúde, saneamento e infraestrutura, sobretudo quando há desemprego e capacidade ociosa, devem ser avaliados pelos seus resultados, pelos seus custos de oportunidades e seus benefícios, não pelo seus custos financeiros e seus efeitos sobre a dívida no curto prazo. A relação entre a dívida e o produto interno estará sempre sujeita a ciclos. É a solvência, entendida como a convergência, uma trajetória não explosiva no longo prazo, da relação entre o passivo financeiro consolidado do governo e o produto interno, que dá ao Estado condição de investir e de atenuar os ciclos econômicos. Nada de novo, nem de radical. Talvez por isso mesmo, tão difícil de ser compreendido e aceito. (Valor Econômico – 21/06/2019)

André Lara Resende é economista

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