Luiz Carlos Azedo: O país à deriva

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Fechamos o quinto mês do ano com a economia estagnada: menos 0,2% de crescimento do PIB no último trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior, com o governo de Michel Temer já na bacia das almas. No ano passado, o crescimento do PIB foi de 1,1%; as agências de risco já estão projetando um PIB abaixo de 1% neste ano. O mercado já não espera a reforma da Previdência, cuja discussão na Câmara vai muito bem, obrigado. Está esperando que o governo Bolsonaro corrija o seu rumo de proa, porque a agulha aponta numa direção, mas o país deriva para o mesmo destino no qual foi lançado pelo governo Dilma Rousseff: a recessão.

Não existe bilhete premiado na Presidência da República. A eleição provou que o presidente Bolsonaro é um homem de sorte, poderia até ter morrido com a facada que levou em Juiz de Fora, em plena campanha. A brutal agressão acabou catapultando ainda mais sua candidatura e teve um papel importante na sua vitória. Mas não é bom abusar da sorte. A compulsão por jogos é semelhante a outros vícios, como alcoolismo, tabagismo e as drogas em geral. Estimula as mesmas áreas cerebrais e o comportamento é bem semelhante: compulsivo e impulsivo, a única coisa que tem de diferente é que não há o consumo de uma substância, mas se repete várias vezes na prática de mesma atividade prejudicial.

Diferentemente das drogas, o jogo é visto como um desvio moral, principalmente pela questão financeira, já que o jogador compulsivo geralmente perde muito dinheiro. Entretanto, é uma patologia, um transtorno diretamente proporcional à disponibilidade de jogos. Alguém já disse que a política é a arte das artes e a ciência das ciências, mas também é um jogo. E todo político é um uma espécie de jogador compulsivo, pode perguntar a qualquer um das suas relações. O problema é que na Presidência da República, ainda mais num país de dimensões continentais, social e culturalmente complexo como Brasil, a caneta presidencial não é um taco de sinuca. As ações do governo têm uma força de inércia que afeta tremendamente a vida das pessoas. Quanto se erra estrategicamente nesse jogo, os estragos são em grande escala: os 14 milhões de desempregados, por exemplo. Não adianta rezar.

Sorte é madrasta

O mundo moderno deve a Nicolau Maquiavel a separação entre a política e a religião. No exílio, o sábio de Florença escreveu O Príncipe, um manual político para governantes que almejassem não apenas se manter no poder, mas ampliar suas conquistas. Conta sucessos e fracassos dos poderosos da época para ilustrar conselhos e opiniões, numa tentativa de reaproximação com os Médici. No fim da Idade Média, retomava-se a clássica visão antropocêntrica do mundo, na qual o homem era a medida de todas as coisas. Foi um resgate dos filósofos gregos em resposta ao poder teológico-político dos reis e da Igreja em plena Renascença. O diálogo entre a burguesia emergente e a realeza, com a emergência do mercantilismo, está na gênese do nosso humanismo. Não por acaso, o pensamento de Maquiável resulta da experiência das cidades-estado sob influência papal.

A questão da legitimidade e o exercício do poder estavam no centro das preocupações de Maquiavel. O governante precisa ser dotado de virtú e fortuna, simultaneamente, para chegar e manter o poder. A virtú exige conhecimento e habilidade, que são também os atributos dos bons jogadores para não brigar com a sorte. A fortuna não é a sorte, simplesmente, como deduz a leitura vulgar de Maquiável. Trata-se das contingências ou das circunstâncias com as quais o governante tem que lidar, que mudam a cada conjuntura. É por isso que o florentino adverte: as mudanças de conjuntura podem transformar certas virtudes em grandes defeitos: “Quando um príncipe deixa tudo por conta da sorte, ele se arruína logo que ela muda. Feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder aos tempos, e é infeliz aquele cujo proceder não se ajusta aos tempos”. Napoleão Bonaparte foi um estudioso de Maquiavel, seus comentários sobre O Príncipe estão na edição brasileira da Ediouro. Nem por isso deixou de errar, mas seus comentários são bem interessantes. Quem quiser saber por que perdeu a guerra, deve ler Guerra e Paz, de Liev Tolstoi (Companhia das Letras).

O Brasil é uma democracia de massas, com instituições republicanas que sobreviveram à hiperinflação, à recessão e a dois impeachments. Assim como houve uma radical alternância de poder, com a eleição de Bolsonaro, também existe o pleno exercício do dissenso, seja à direita, como no último domingo, seja à esquerda, como ontem. Faz parte do jogo, mas isso não significa que devamos apostar no caos ou no quanto pior, melhor. A ideia de que Deus está acima de tudo e de todos na política é anterior a Maquiável e não é boa conselheira. O país precisa desviar seu curso do desastre e encontrar um porto seguro. A calmaria econômica é um mau presságio. (Correio Braziliense – 31/05/2019)

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