Há 20 anos, ninguém comia aspargos peruanos. Hoje, o Peru é o maior exportador de aspargos frescos do mundo, e o segundo maior exportador de aspargos processados depois da China. O Peru exporta 99% de toda sua produção de aspargos. A maior parte vem da província de Ica, região árida onde está localizado o maior aquífero do Peru, responsável pelo suprimento de água para boa parte do país e pela produção de aspargos.
Aspargos exigem água em abundância. Conto tudo isso para relatar algo inusitado. Na semana passada, durante as reuniões de primavera do FMI e do Banco Mundial, participei de um painel cujo tema era a trajetória da América Latina nos últimos 60 anos e seus rumos nos próximos 60. Os aspargos peruanos apareceram na pergunta de um membro da plateia, que manifestou intensa ansiedade com a perspectiva de que mudanças climáticas possam dizimá-los devido à projetada escassez de água. O drama do vegetal acabou me levando a pensar sobre os refugiados ambientais, termo cunhado nos anos 70 para referir-se aos riscos malthusianos do crescimento populacional desenfreado, mas hoje usado para discutir a gravíssima crise migratória planetária.
Longe dos aspargos, cresce a preocupação com os imigrantes da América Central, que continuam chegando aos milhares à fronteira do México com os Estados Unidos. Muitos fogem da violência de seus países de origem, de governos corruptos que não têm conseguido controlar a escalada do crime organizado. Contudo, essa não é toda a história das caravanas de imigrantes de Honduras, El Salvador, Guatemala que lotam os vilarejos na fronteira e os acampamentos cada vez mais abarrotados nos Estados Unidos.
Segundo diversos estudos e relatórios recentes, parte significativa dos imigrantes recém-chegados à fronteira que separa o México dos EUA são provenientes do chamado “corredor seco” (“dry corridor” em inglês), área extensa da América Central exposta às secas prolongadas seguidas por inundações recorrentes. A área atravessa o chamado triângulo norte, composto por Honduras, El Salvador e Guatemala. Pequenos fazendeiros que vivem no corredor seco estão cada vez mais sujeitos aos problemas climáticos que dizimam suas lavouras. Sem outro meio de sobrevivência, essa gente destituída foge para o norte em números crescentes. No ano passado, o Banco Mundial advertiu que nos próximos 30 anos cerca de 4 milhões de pessoas podem fugir de seus vilarejos no México, em Honduras, El Salvador ou Guatemala em razão das mudanças climáticas. A decisão recente de Donald Trump de acabar com a ajuda humanitária para os países do triângulo norte deverá agravar a situação.
Relatórios da ONU apontam os riscos crescentes de que as mudanças climáticas esperadas nos próximos anos gerem aumento brutal de refugiados ambientais no mundo inteiro, elevando o fluxo das regiões menos desenvolvidas do planeta para as regiões mais desenvolvidas. Tal perspectiva poderia ter consequências desastrosas para a política e para a geopolítica, sobretudo dado o momento de repúdio aos imigrantes e do aumento de movimentos políticos denominados populistas cuja agenda central é o nativismo e a xenofobia. Na literatura sobre a ascensão desses movimentos – mais nacionalistas do que propriamente populistas – cita-se com frequência os efeitos perversos da globalização, da automação da produção, do aumento da desigualdade de renda como explicações para a exacerbação do nacionalismo em suas diversas manifestações. Fala-se muito, também, de como os movimentos nacionalistas ultraconservadores e nativistas rejeitam as evidências sobre as mudanças climáticas, rechaçando o Acordo de Paris e outros tratados internacionais. O efeito recíproco, entretanto, geralmente merece pouca ou nenhuma atenção: se o nacionalismo nativista é uma reação à crise migratória, e se a crise migratória tende a ser impulsionada, entre outros motivos, pelas mudanças climáticas, a lógica conclui que as mudanças climáticas serão responsáveis pelo alastramento e pela permanência dos movimentos nacionalistas nativistas. Ou seja, nada há no horizonte capaz de reverter as tendências políticas desse fim de década. (O Estado de S. Paulo – 17/04/19)
A terra em transe presa está na angústia humanitária, política, econômica do clima abafado. Há saída? Há o poema de Mário Faustino:
“Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto”
MONICA DE BOLEE, ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY