Na semana passada, Mauricio Macri anunciou o “Plan Otoño” contendo drásticas mudanças na visão da coalizão Cambiemos acerca do combate inflacionário – em particular, ressuscitando o congelamento de preços de diversos produtos em acordo firmado com empresários. A medida heterodoxa recebeu duras críticas e poucos afagos, já que seu histórico de fracassos na Argentina e na América Latina mais amplamente é muito bem documentado. No Brasil, parte da esquerda se alvoroçou ao ver no congelamento o sinal de que o “neoliberalismo” de Macri havia naufragado.
Contudo, um breve passar de olhos nos dados fiscais revela que Macri não conseguiu reverter a trajetória de gastos crescentes que prevaleceu durante toda a era Kirchnerista, e que se agravou quando Cristina estava no poder. Em 2015, Macri herdara da antecessora 41,4% de gastos públicos como proporção do PIB. Em 2017, esses gastos continuavam quase que estacionados no mesmo patamar. Portanto, as promessas de Macri jamais se cumpriram, o que explica parte do fracasso atual.
Macri foi eleito em outubro de 2015, prometendo consertar gradualmente os imensos desarranjos macroeconômicos do Kirchnerismo, a começar pela confusão com os fundos abutres detentores de parte da dívida não renegociada da Argentina que haviam impedido que o país tivesse acesso ao mercado internacional de capitais. Macri assumiu a presidência em dezembro daquele ano e imediatamente iniciou negociações intensas com os fundos que haviam comprado papéis de credores descontentes para reabrir o acesso aos mercados. O sucesso foi rápido e logo a Argentina recebia fluxos maciços de investidores estrangeiros e tornava-se o país emergente com as melhores perspectivas em 2016, razão para que muitos economistas – incluindo esta que vos escreve – achassem que a direção estava acertada, ainda que o caminho do ajuste fosse difícil.
Tal impressão foi corroborada em 2017, quando o país não apenas conseguiria a proeza de lançar título soberano com prazo de cem anos nos mercados internacionais, como também asseguraria a vitória da coalizão de Macri nas eleições legislativas, marcando a desordem do Peronismo. Em 2017, a economia da Argentina cresceu 2,7%, enquanto a inflação parecia ter se estabilizado ao redor dos 25% ao ano – ainda elevada, mas não mais do que durante a era Kirchner. Cabe recordar que durante a era Kirchner, sequer conhecíamos os números verdadeiros da inflação, já que o governo havia desmontado os órgãos oficiais de estatísticas, como o Indec.
Há apenas 18 meses, a Argentina crescia a taxas anualizadas de mais de 3,5% ao ano, e o gradualismo de Macri – após pouco mais de dois anos de sua eleição – ia de vento em popa. Hoje, o país enfrenta uma recessão, a inflação está ao redor de 4% ao mês, e o governo não consegue controlá-la apesar do apoio financeiro do FMI. Matéria recente do jornal El Clarín conta os bastidores do “Plan Otoño”, deixando claro que houve resistências dentro do governo em relação ao inusitado congelamento de preços.
Contudo, diante das advertências do Indec de que a inflação não apenas resistia, mas tendia a subir, e ante pesquisas de opinião revelando que a população começava a clamar para que Macri atuasse para conter a escalada dos preços, a pressão para que se impusesse o controle de preços com eleições presidenciais em outubro derrubou a resistência das alas mais ortodoxas. O caso da Argentina, portanto, não se presta a leituras simplórias de que “o neoliberalismo falhou”. Trata-se de uma economia que opera com duas moedas – o dólar e o peso – o que torna o combate inflacionário pelas vias tradicionais da política monetária extremamente complicado.
Trata-se de um país com anos de desequilíbrios econômicos acumulados cuja reversão pelo tradicional “tratamento de choque” teria arremessado mais pessoas ainda à pobreza – nesse aspecto, o gradualismo de Macri pode ser considerado além de pragmático, bem pouco “neoliberal” na acepção mais negativa do termo. Trata-se, também, de um país em que os líderes eleitos cometeram erros ao longo do caminho que custaram muito caro à população. Desse grupo, Macri não deve ser poupado, já que está no comando há quase 4 anos. Trata-se de um país que, apesar de tudo isso, recebeu selo de confiança do FMI com um programa de US$ 57 bilhões.
Por fim, trata-se de um país em que Mauricio Macri ainda tem cerca de 30% a 40% de aprovação popular, a depender da pesquisa de opinião que se considere. Se o Brasil não é para principiantes ou amadores, o que dizer da Argentina. (O Estado de S. Paulo – 24/04/2019)
MONICA DE BOLLE, ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY