Na ressaca da ameaça de mais uma greve pelos caminhoneiros, Bolsonaro revelou ter uma “simpatia inicial” pela privatização da Petrobrás. O presidente teria chegado à inevitável conclusão de que as estatais estão sempre sujeitas ao uso político. Mesmo em um governo liberal, que não é o caso deste, as empresas públicas são naturalmente vistas como instrumento de negociação política, em sentido amplo. Desde o uso criminoso, como revelou a Lava Jato, até a expectativa de que os preços de seus produtos sejam controlados, passando por indicações políticas para cargos executivos. Severino Araújo foi apenas mais singelo ao pedir “aquela diretoria que fura poço”, mas há na classe político-partidária a presunção de que essas empresas fazem parte do jogo. A Lei das Estatais melhorou muito a governança dessas empresas, ao exigir qualificação técnica e dificultar indicações partidárias aos seus postos de comando.
Uma boa governança ajuda, mas não resolve. A intervenção do presidente na política de preços da Petrobrás é prova cabal disso. Só há uma solução para blindar as empresas e proteger o patrimônio que, controlado pela União, é nosso: a privatização. O governo tentou, em um contorcionismo narrativo, dizer que a Petrobrás voltou atrás na sua decisão de elevar o preço do diesel por livre e espontânea vontade. A conversão de Bolsonaro à fé privatista teria sido parte do plano. Mas a versão não colou. Ao menos, a lição parece ter sido aprendida. Os primeiros R$ 30 bilhões perdidos em um único dia, nunca se esquece, sendo pouco provável que novas interferências venham a ocorrer. Mas de que privatização Bolsonaro estaria se aproximando? Na realidade, nada mais fez do que reforçar a política de desinvestimentos da empresa que foi desenhada já no governo passado: venda de parte de sua posição monopolista no refino, distribuidoras da Gaspetro e BR Distribuidora.
Neste último caso, sem alienação do controle. A decisão continua sendo preservar a Petrobrás focada na sua vocação principal, que é óleo e gás. Bom lembrar que a venda do controle é vedada pelo art. 62, da Lei 9478/97, assim Bolsonaro dependeria da autorização do Congresso para sua privatização. No rastro dessa discussão, o tema da desestatização voltou mais seriamente ao noticiário. As divergências internas foram expostas, desde a entrevista do secretário Salim Mattar à revista Veja. Salim se diz frustrado. Eu também. Da promessa irreal da arrecadação de R$ 2 trilhões com venda de ativos e imóveis, teremos de nos contentar com a previsão de pouco mais de R$ 80 bilhões para este ano, neles já incluídos a conclusão dos leilões de concessão, previstos desde o ano passado.
EBC, Ceitec, EPL continuam fora da lista. Pelo menos a venda dos Correios parece ter entrado na pauta. Seria necessária uma maior determinação de Bolsonaro para arbitrar as disputas ministeriais e colocar em definitivo a venda de ativos nas mãos de Salim e Guedes. Minha experiência mostra que sem a determinação do presidente, no caso FHC, não anda. Mas a pergunta que não quer calar é: por que a venda de estatais encontra tantas resistências? A simples comparação da universalização alcançada na energia elétrica e nas telecomunicações, com os vergonhosos índices de cobertura de esgoto deveria ser suficiente para mostrar os seus benefícios. Sobre a desestatização de setores da atividade econômica não há nem o que discutir, porque o Estado não deveria ter estado por lá em primeiro lugar.
O debate sobre o tema parece um diálogo de surdos. De um lado, os argumentos vão desde “setores estratégicos” ao crime de lesa-pátria, do outro, tudo o que o Estado faz, faz malfeito. Quando assumi a diretoria de desestatização no BNDES, fui para contribuir com a reforma do Estado, parte do Plano Real. Tinha uma visão mais pragmática. A convivência com o universo dessas empresas me levou a uma postura mais radical: é preciso privatizar tudo que a Constituição permitir. As companhias controladas pelo governo não têm a capacidade de se modernizar com a rapidez que a competição exige, pois são limitadas pela lei de licitação e pela inflexibilidade na política de pessoal, por exemplo.
Além de não conseguirem ofertar serviços de forma eficiente, essas barreiras criam um ambiente fértil para grupos de interesse se alimentarem dessa ineficiência. Não é por acaso que funcionários, políticos locais e fornecedores sejam os maiores opositores à desestatização. Usam o imaginário da população, como “entreguismo do patrimônio”, para falar em nome da sociedade. São as saúvas do Estado. Bolsonaro deve ter percebido isso na negociação com os caminhoneiros. Daí sua simpatia inicial. Que vire amor, ou quase amor. (O Estado de S. Paulo – 26/04/2019)