Fernando Gabeira: O ‘pintou um clima’ de Jair Bolsonaro expõe contradição

Gostaria de discutir as mudanças climáticas. No entanto tenho de analisar a frase de Bolsonaro segundo a qual pintou um clima entre ele, sexagenário, e refugiadas venezuelanas de 14/15 anos.

No Brasil, os escândalos se sucedem, há o perigo de perder a sensibilidade ou mesmo perder o rumo, transitando, desordenadamente, entre um e outro.

A frase de Bolsonaro é importante porque revela a distância entre sua vida real e o papel que procura encarnar: defensor da religião, da família e dos valores tradicionais.

Não é a primeira vez que um homem mais velho confessa sua atração por meninas. A literatura tem um exemplo célebre, o romance “Lolita”, de Vladimir Nabokov.

No entanto o personagem do romance, Humbert Humbert, que escandalizou sua época, não é um presidente da República, não se define como um baluarte da família tradicional nem grita “Deus acima de todos” diante da multidão.

Bolsonaro, segundo Alexandre de Moraes, não pode ser incriminado por pedofilia. Tudo bem. Mas pode ser acusado de hipocrisia, porque, embora não tenha realizado um ato, confessou emoções de um pedófilo.

Na verdade, para quem acompanha a carreira política de Bolsonaro, essa versão piedosa de um homem virtuoso com a Bíblia na mão não bate com a realidade.

Para começar, ele conhece bastante bem a expressão “pintar um clima” e sempre a utilizou, vídeos demonstram isso, com conotação sexual. Bolsonaro sempre usou uma linguagem de vestiário masculino. Sua vida sentimental é parecida com outras vidas modernas que passam por mais de um casamento. Ele sempre diz palavrões e faz comentários do tipo amizade heterossexual quando se refere a alguém próximo. Na verdade, é fixado nesse tema: viu na própria vacina a ameaça de homem falar fino e de crescer barba nas mulheres.

Um dos passaportes para a santidade foi o batismo no Rio Jordão, realizado por um pastor que, por sinal, foi preso por desviar dinheiro público.

Antes disso, era um fervoroso defensor da limitação da natalidade para combater a pobreza. Dizia em seus discursos que a Igreja era responsável pela miséria no país, pois se opunha a um programa de laqueadura.

Seu nicho eleitoral eram famílias de militares. Mais do que os outros deputados, usava cartas como instrumento de comunicação com seus eleitores.

De repente, Bolsonaro, sem alterar sua linguagem e sentimentos, passa a falar para evangélicos e decide encarnar o líder político e espiritual que salvará o Brasil dos banheiros unissex, das mamadeiras de piroca, do aborto e da exploração sexual de crianças.

Quando ele mesmo confessa seus olhares libidinosos para pobres venezuelanas de 14/15 anos, era para seu mundo cair. Tanto seus adversários quanto o mundo político e a mídia foram todos complacentes com essa gigantesca contradição.

Seria o mesmo que um líder da luta contra a corrupção aparecer com milhares de dólares na cueca. Os movimentos no interior das cuecas brasileiras parecem chocar apenas quando se trata de fatos monetários.

Toda essa gigantesca invasão da política pelas teses religiosas está, na verdade, baseada numa farsa. Bolsonaro, nesse sentido, é realmente um mito.

Curioso que isso aconteceu parcialmente com Trump nos Estados Unidos. E os líderes religiosos que o apoiavam disseram: é um homem sem virtudes, mas foi o escolhido para nos dirigir. É uma versão política daquela máxima: Deus escreve certo por linhas tortas. Mas, neste caso, Deus não só estaria escrevendo por linhas tortas, mas usando uma caligrafia horrorosa.

A frase de Bolsonaro sobre vulneráveis refugiadas, pobres, descoladas de seu país, cultura e idioma, é um sintoma de uma grave doença na sociedade brasileira. Um presidente não poderia sentir e falar isso, muito menos um presidente que se diz líder do Brasil religioso, defensor da família e toda essa cantilena que grita nos comícios.

Aceitar o “pintou um clima” de Bolsonaro é, na verdade, aceitar um clima pestilento que nos levará a tempos mais sombrios ainda. (O Globo – 24/10/2024)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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