Rosângela Bittar: Bolsa de estudo é emprego sem direitos

O governo Bolsonaro está deixando passar desapercebidas da sociedade as maiores distorções que existem hoje no sistema educacional brasileiro e na estrutura governamental das atividades de ciência e tecnologia. Joga tudo para debaixo do tapete dos cortes de verbas como se isso fosse resolver os problemas. Ao contrário, cortar nessas áreas é retrocesso certo, a décadas atrás.

Ignora-se tudo nesse campo, inclusive a forma como essas questões estão misturadas, uma influindo no desenvolvimento da outra e todas elas absolutamente misturadas às melhores soluções para os problemas econômicos do Brasil. Que o governo pretende resolver com os cortes e assim fechar o círculo vicioso que baixa o astral de profoloessores, estudantes, pesquisadores, cientistas.

O orçamento da Capes (coordenação para o aperfeiçoamento de pessoal do nível superior), do Ministério da Educação, terá um corte de 50% para o ano que vem, inviabilizando os programas que desenvolve pois não há adaptação possível de um orçamento de R$ 4,3 bi, já insuficiente, para R$ 2 bi a menos, e. No mesmo caso está o CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia, agência de fomento que desenvolve poucos e bons projetos, com um corte estimado em 87% nas suas verbas deste ano.

Os números estão ainda imprecisos, não houve explicações de programa a programa, e a punição desses setores com o corte de verbas se confunde muito com o discurso ideológico punitivo do governo.

O assunto não merece dos ministros de Bolsonaro a atenção que merece, por sua importância e complexidade. Para as autoridades, essas palavras são rubricas orçamentárias impessoais e o corte indolor.

Uma das mais graves distorções desconsideradas pelo governo no sistema é o cruzamento dos problemas, a redução das bolsas de estudo com o aumento das altas taxas de desemprego, sobretudo dos formados mais recentemente. O governo Bolsonaro não está discutindo o corte das bolsas de estudo no contexto do emprego, mas simplesmente como uma redução de um benefício, como se fosse uma concessão privilegiada aos mais privilegiados.

Nos últimos anos, sem sombra de dúvidas, este é o governo mais fraco na gestão da educação e da ciência e tecnologia, em planos, programas e declarações aleatórios e muitas vezes absurdos. Quando não apenas ideológicos ou apenas repetições enfadonhas destinadas as fazer eco ao humor beligerante do chefe.

Os cortes são instrumentos administrativos importantes, embora não se saiba até agora exatamente sua extensão. Mas a falta de critérios e de conhecimento do que se passa nos setores a serem podados anula a intenção salvacionista que podem representar.

E, da maneira como estão anunciados hoje, são repetição de métodos e conceitos do passado. Nos anos 70, quando também não havia dinheiro, já se dizia que as instituições deveriam buscar complementar seu orçamento com a participação das forças econômicas da comunidade. Mas o governo não lavava tanto as mãos, como faz agora.

São muitos os agravantes. O Brasil está com um problema descomunal de desemprego, em todos os níveis de instrução e estratos sociais. O Ministério da Educação jamais pensou e discutiu o fato de que os recém formados têm, nas bolsas de pós graduação, uma válvula de escape ao desemprego.

O graduado foge para o mestrado, daí vai ao doutorado e, quando o conclui, ainda sem emprego, começa um pós-doutorado, o chamado pós-doc que se expande nas mais diferentes áreas do conhecimento. Uma tentativa de ganhar tempo até que apareça trabalho, sem fundo de garantia, férias ou demais benefícios. Cortar bolsas de estudo é cortar emprego.

Problema que passa longe das divagações dos ministros deste governo.

Uma segunda grave distorção que o governo ignora nas suas discussões é a tentativa de procurar solução para o problema através da fusão da Capes com o CNPq, ou da incorporação de um ministério pelo outro, como se fossem órgãos que fazem a mesma coisa.

Com a experiência de já ter transitado da direção geral da Capes para a diretoria do CNPq, e ter liderado a implantação do mais importante instrumento de desenvolvimento da Ciência, o PADCT (o plano anual), o professor Hélio Barros foi um dos que já marcaram essa diferença, mostrando a inadequação da fusão, a partir da razão de que tudo é a mesma coisa. “Bolsa, tudo bem, é um mecanismo que existe em diferentes órgãos governamentais e privados; mas a fusão de Capes e CNPq é como se considerássemos duas religiões iguais só porque são religiões. Capes e CNPq têm diferentes objetivos, atribuições, estruturas, funcionamento, são absolutamente diferentes”.

Enquanto o CNPq tem como objetivo fortalecer a pesquisa, o pesquisador, o outro sistema procura fortalecer as instituições, afirma o professor. Esse é outro velho cacoete dos anos 70, de querer fundir educação, cultura, ciência e tecnologia.

Nos governos Lula foram criadas algumas distorções que se aprofundam com as intenções das autoridades de agora. Por exemplo: ao expandir os programas de bolsas de estudo, o governo, que se considerava de esquerda, transformou-se no mais privatista dos governos na área da Educação, fortalecendo a rede privada com o Fies, o Prouni e outros benefícios que transformaram as universidades particulares em grandes conglomerados com ações em bolsa. O movimento, por outro lado, enfraqueceu as universidades públicas, até então os principais centros de difusão do conhecimento, da pesquisa pura e aplicadas.

É um desastre que haja cortes e ideia de fundir Educação e C&T, sem olhar para os problemas mais complexos. Juntar MEC e Ciência e Tecnologia, além de ser uma discussão do passado, que já se provou ineficiente, pode enterrar ainda mais a Ciência. As empresas começaram a reagir, enquanto o governo buscava consolidar a base científica que se encontrava nas instituições de educação ou de pesquisa.

Como muitos outros avanços, as mudanças atingiram a sociedade e ainda não chegaram ao governo. Há, do lado da indústria e das empresas, a consciência de que a ciência deve produzir para servir à produção do país. Enquanto isso o governo ideologiza tudo e abraça as soluções fáceis. A tesoura é uma delas; a falta de debate é outra. (Valor Econômico – 11/09/2019)

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras

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