Luiz Carlos Azedo: Sarcófago do passado

Nas entrelinhas

“Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo, gera tensões sociais e políticas desnecessárias”

Das muitas faces do fascismo como regime político, a que determina a essência de sua natureza é o terrorismo de Estado. A existência de um partido de massas organizado e militarizado, com um braço armado, que foi a característica principal dos partidos de Benito Mussolini, na Itália, e de Adolf Hitler, na Alemanha, não seria suficiente para a caracterização do regime se não houvesse implementado, de forma sistemática, o terrorismo de Estado.

A supressão de liberdades e garantias individuais e a perseguição sistemática de oposicionistas são suficientes para caracterizar um regime autoritário, seja de direita, seja de esquerda, como na Hungria e na Venezuela, respectivamente. O fascismo aberto se instala, porém, quando a repressão policial é acionada de forma sistemática contra a população em geral, a pretexto de manter a ordem pública, e a perseguição seletiva aos oposicionistas se estabelece com objetivo de eliminar fisicamente os adversários, por meio de prisões, sequestros, torturas e assassinatos.

Foi o que aconteceu, por exemplo, nos regimes militares que se instalaram na América Latina nas décadas de 1950 (Guatemala e Paraguai), 1960 (Argentina, Brasil, Bolívia, República Dominicana, Nicarágua e Peru) e 1970 (Uruguai e Chile), com forte apoio dos Estados Unidos, em razão da guerra fria com a União Soviética e demais países da então chamada Cortina de Ferro. A maioria desses países transitou para a democracia e se manteve na órbita do Ocidente, a partir do governo de Jimmy Carter, o presidente norte-americano que adotou a defesa dos direitos humanos como vértice de sua política externa, no fim dos anos 1970.

No Brasil, o processo de democratização foi uma longa transição, iniciada nessa época, com a “anistia geral, ampla e recíproca” aprovada pelo Congresso em 1979, depois de muita negociação entre os militares e a oposição. A redemocratização do país foi concluída em 1985, quando os militares deixaram o poder, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral e a convocação de uma Constituinte pelo presidente José Sarney, o vice que assumiu devido à morte do presidente eleito.

A chave desse processo foi, de um lado, a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos; de outro, a impunidade dos torturadores e assassinos que, nos porões do regime militar, fizeram o serviço sujo para os generais que ocuparam o poder. Esse é nó górdio da democracia brasileira, assunto pacificado entre as Forças Armadas, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Constituição de 1988. Todas as tentativas de rever a Lei da Anistia fracassaram, inclusive nos governos Lula e Dilma; agora, com sinal trocado, para o bem da democracia, não deve ser diferente.

Fantasmas

No lamentável episódio dos comentários do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre o sequestro e o assassinato do líder estudantil Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o mais grave não é o desrespeito para com a família do desaparecido e a insensibilidade do presidente Bolsonaro diante de um tema tão delicado (a perda de um parente próximo), é a defesa que fez do terrorismo de Estado praticado durante o regime militar, na contramão de tudo o que já foi feito para cicatrizar essa ferida purulenta. Revelou um viés autoritário que confronta a Constituição de 1988, suas instituições e compromisso claro com os direitos humanos. A rigor, confrontou o decoro e a responsabilidade do próprio cargo que exerce por vontade popular: a Presidência da República.

Não cabe ao presidente Bolsonaro, no âmbito das suas atribuições, fazer a exegese da Lei da Anistia, muito menos da Constituição que jurou cumprir e defender ao tomar posse, assunto sobre o qual quem se pronuncia é o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Sua insistência em revisitar, no sarcófago da ditadura, os fantasmas de um passado que não deve ser resgatado como modelo político, embora jamais deva ser esquecido, revela uma personalidade que se coloca acima do Estado democrático de direito, confundindo as próprias idiossincrasias com as prerrogativas do cargo.

Grosso modo, o atual governo tem características bonapartistas, por se colocar acima das classes sociais e se sustentar no “partido das armas”. Mas foi eleito num processo democrático, legitimamente, e a oposição precisa aprender a conviver com isso, sem abrir mão do direito ao dissenso e de lutar pelo poder. Entretanto, o presidente Bolsonaro também precisa aprender a respeitar as regras do jogo democrático e valorizar mais os consensos construídos ao longo de décadas para garantir a coesão da sociedade.

Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo em diversas áreas, gera tensões sociais e políticas desnecessárias, que podem dificultar e até agravar a solução dos verdadeiros problemas do país. (Correio Braziliense – 31/07/19)

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