Humberto Saccomandi: Ambiente ameaça sim o acordo UE-Mercosul

O governo Bolsonaro prometeu abrir o Brasil ao comércio e flexibilizar as regras ambientais do país. Esses compromissos podem se mostrar incompatíveis, ao menos no caso do acordo UE-Mercosul. O crescente lobby ambientalista europeu ameaça inviabilizar o principal acordo comercial já negociado pelo Brasil. É provável que, nalgum momento, o governo tenha de escolher qual é sua prioridade. Deveria ser comércio aberto com proteção ambiental.

O acordo, pelo que se sabe, formaliza a adoção de dispositivos ambientais num tratado comercial, algo que é debatido há décadas e que era já esperado. Esses dispositivos Humberto Saccomandi: Ambiente ameaça sim o acordo Upodem facilmente se chocar com a política ambiental praticada até agora no governo Bolsonaro.

A conclusão das negociações, após 20 anos, foi anunciada há duas semanas. O texto final do acordo, porém, ainda não está disponível. Está passando por avaliação jurídica dos dois lados, o que deve levar alguns meses, já que é normal que surjam divergências de interpretação.

Em seguida começa o processo de assinatura e ratificação, o que deverá ser o maior desafio. Na UE, o primeiro passo é a aprovação pelo Conselho Europeu (que reúne os líderes dos 28 países do bloco). Como é preciso consenso, qualquer país pode barrar o acordo. Se aprovado, o texto vai para o Parlamento Europeu. Se de novo aprovado, o Conselho pode colocar o acordo em vigor, total ou parcialmente. Mas, para ele ser finalmente aceito, o texto precisa ainda ser ratificado pelos Parlamentos dos 28 países e por alguns Parlamentos regionais.

É um processo complexo, politicamente difícil e pouco transparente. Ou seja, é muito sujeito à ação de lobbies. E, além do lobby agrícola europeu, que nunca viu com bons olhos a negociação com o Mercosul, soma-se agora o cada vez mais poderoso lobby ambientalista.

Partidos verdes estão em alta na Europa. Eles participam do governo de alguns países, como Suécia, Dinamarca e Finlândia. Segundo pesquisas, os Verdes são hoje o segundo maior partido alemão em intenção de voto. O bloco verde tem a quarta maior bancada no recém-eleito Parlamento Europeu. Além disso, outros partidos não querem ser vistos como antiambientais.

“A UE pode não ratificar. No Brasil se dá a entender que a ratificação são favas contadas. Não é assim. Corremos o risco de preparar os agentes econômicos, a sociedade, o Congresso para o acordo, e ele não acontecer”, diz o embaixador José Alfredo Graça Lima, que foi o principal negociador comercial do Brasil entre 1998 e 2002. “O acordo é um avanço significativo [para o Brasil], mas pode ficar parado até que a UE o ponha em vigor.”

Para satisfazer esse poderoso lobby ambientalista, o acordo UE-Mercosul, pelo que se sabe, inclui dois dispositivos. Um é a obrigatoriedade de os países permanecerem no Acordo do Clima de Paris. Bolsonaro havia prometido deixar esse acordo, mas já não fala mais nisso. Permanecer, porém, significa cumprir os compromissos assumidos pelo Brasil. E, neste momento, o governo não sinaliza nessa direção. Pelo contrário, há um desmanche dos órgãos que deveriam implementar e fiscalizar esses compromissos.

O segundo dispositivo é o princípio da precaução, que permite limitar o comércio de produtos prejudiciais. Com isso, a UE pode, por exemplo, barrar bens (carne, soja) produzidos em áreas desmatadas no Brasil, pois o desmatamento provoca danos globais (pelo princípio, não é preciso provar o dano, mas apenas ter evidências científicas que sugiram essa possibilidade).

Desde a conclusão das negociações, houve uma forte reação contrária ao acordo na Europa. Grupos ambientalistas dizem que ele não tem dentes, isto é, que não traz mecanismos para punir um país em caso de violação ambiental. Essa versão tem circulado também no Brasil.

Mas não é bem assim. “Se o acordo tiver um mecanismo de solução de controvérsias, qualquer percepção de que ele está sendo violado pode ser levada ao mecanismo. A parte derrotada será obrigada a aceitar a decisão”, disse Graça Lima, que é vice-presidente do Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Autoridades na UE dizem que exportar padrões ambientais aos países sul-americanos é uma das metas do acordo. E é argumento forte em favor da sua aprovação.

O Brasil reagiu agressivamente a essa preocupação ambiental dos europeus. Bolsonaro disse que não iria ao G-20 ser advertido e chegou a cancelar uma reunião (depois realizada) com o francês Emmanuel Macron. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, disse aos europeus para irem “procurar a sua turma”.

Esse tipo de reação amplia as suspeitas na Europa sobre as intenções do Brasil, cada vez mais visto como um vilão ambiental. O dado de desmatamento não ajudou. Divulgado logo após o anúncio do acordo, ele indicou aumento de 88% em junho.

Mas a proteção ambiental joga contra o desenvolvimento do Brasil? Possivelmente não. No caso do comércio, diz Graça Lima, “situação hoje é muito diferente da do início dos anos 90, quando havia a necessidade absoluta de acesso a mercado, com o temor de que exigências ambientais afetassem isso”.

Pelo contrário, essas exigências podem hoje favorecer o Brasil na concorrência com emergentes, como China e Índia, que têm matriz energética mais suja, desafios ambientais mais graves, e necessidade maior de ampliar a geração de energia elétrica. Os custos desses países para cumprir seus compromissos ambientais serão maiores. Vão implicar em custos maiores de produção, com vantagem para o Brasil.

“O Brasil não é só uma potência agrícola, é uma potência agro-ambiental. A ministra Tereza Cristina tem consciência disso, talvez mais do que o Ministério do Meio Ambiente”, diz Graça Lima. “Com cláusulas ambientais, o Brasil ganha duas vezes. Ganha para si e ganha para o comércio.”

Para a UE, diz um experiente diplomata europeu, a questão ambiental-climática é interesse comum, como um clube. E, se um membro do clube não cumprir com suas obrigações, não pode usufruir dos benefícios comuns. “Se não pagar a mensalidade, não pode frequentar a piscina.”

No acordo UE-Mercosul, essa mensalidade inclui obrigações ambientais. O benefício sob ameaça é o comércio. “Estamos para ver ainda como as questões ambientais podem ter efeito negativo no acordo”, diz Graça Lima. “Mas esses compromissos [do governo Bolsonaro, de liberalizar o comércio e flexibilizar as regras ambientais] podem sim ser incompatíveis.” (Valor Econômico – 12/07/2019)

Humberto Saccomandi é editor de Internacional. Escreve mensalmente às sextas-feiras – E-mail: humberto.saccomandi@valor.com.br

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