Cristovam Buarque: Tribunal contra geocidas

Em vez de tentar esconder a dimensão da tragédia do desmatamento da Amazônia, como fez o ministro do Meio Ambiente, ao desconsiderar informações científicas do Instituto Nacional de Pesquisas Especais (Inpe), o Brasil deveria liderar um movimento mundial pela criação do Tribunal Internacional Contra Crimes Ambientais: emissão de carbono, incêndios florestais, contaminação da água. Para isso, precisa fazer o dever de casa não apenas nas florestas, mas em uma reorientação do modelo econômico. E retomar o papel de Collor com a ECO-92 e de Lula/Dilma com a Rio+20.

Dentro de poucas décadas, quando o aquecimento global já tiver provocado a elevação do nível do mar, cobrindo milhares de quilômetros litorâneos, desagregando a agricultura, provocando fome generalizada e guerras permanentes, forçando a migração de milhões de pessoas ao redor do mundo, a “pedagogia da catástrofe” terá chegado atrasada, como aconteceu com o julgamento dos nazistas depois do holocausto. Os responsáveis pelos desastres ecológicos devem ser tratados como “geocidas”.

Diferentemente do Tribunal de Nuremberg, que julgou crimes de genocídio já ocorridos em toda sua trágica dimensão, os crimes de “geocidas” ainda estão ocorrendo, e o julgamento deles pode impedir a marcha para uma tragédia de proporções planetárias.

Não é inteligente e é criminoso incendiar bens dentro do próprio apartamento, porque os móveis são propriedade do dono, mas o apartamento é patrimônio de todo o condomínio, que exige responsabilidade do morador, não podendo nem mesmo aumentar muito o som da música, porque se comete crime contra os vizinhos.

O mesmo vale para as propriedades que são nacionais, mas representam patrimônio da humanidade. As florestas da Sibéria ou da Amazônia, tanto quanto as obras de arte no Louvre são respectivamente propriedades da Rússia, do Brasil, da França, mas são patrimônios universais. A queima do nosso Museu Nacional e da Catedral de Notre Dame foram crimes contra a humanidade. No mundo atual somos todos vizinhos, e temos obrigação de zelar pelo patrimônio da humanidade que estiver dentro de nosso território.

Ainda não temos um tribunal internacional para julgar os crimes contra o patrimônio da humanidade. A jurisprudência aceitando a legitimidade de um tribunal internacional para julgar os genocidas, independentemente de sua nacionalidade, só foi possível graças à “pedagogia da catástrofe”: o que aprendemos com os crimes cometidos pelos nazistas na Alemanha. Ninguém imaginava julgá-los antes para evitar a tragédia, porque a catástrofe só foi percebida depois da morte de seis milhões de judeus, mortos e incinerados pela maldade dos nazistas.

O Tribunal Internacional de Nuremberg foi constituído por quatro países para julgar os crimes cometidos por cidadãos de outro país, porque estes foram considerados criminosos contra toda a humanidade, permitindo a jurisprudência de crime contra a humanidade e do julgamento internacional, condenando 12 genocidas à morte, enforcados no próprio quintal da prisão onde estiveram presos durante o julgamento.

Depois de Nuremberg ,outros tribunais internacionais foram criados para julgar crimes de genocídio e de desrespeito aos direitos humanos contra pessoas e etnias. Em 2002, foi estabelecido o Tribunal Penal Internacional de Haia. Desde então, diversos genocidas foram condenados e estão presos, como o sérvio Radovan Karadzic, condenado à prisão perpétua.

O julgamento internacional de genocidas é uma das grandes conquistas éticas do século 20. Mas o século 21 requer um avanço na definição de crimes ambientais como crimes contra a humanidade. A tortura de indivíduos, a perseguição e a morte de grupos de pessoas continuam como crimes contra a humanidade; seus autores devem ser considerados genocidas. Mas as ações que levam às catástrofes provocadas por mudanças climáticas são crimes contra a humanidade cometidos por assassinos da vida no planeta.

Ainda mais do que os genocidas, que tiraram vida de pessoas, os “geocidas” ameaçam o equilíbrio ecológico, a sobrevivência da civilização e da espécie humana. Mais do que genocidas, os “geocidas” devem ser considerados assassinos não apenas de vidas, mas da Vida. Por isso, nós, brasileiros, donos da Amazônia, esse imenso patrimônio da humanidade, com ou sem o governo, devemos defender o julgamento de todos os “geocidas” do mundo, presidentes, ministros, empresários, independentemente do seu país. (Correio Brazilliense – 27/08/2019)

Cristovam Buarque, ex-senador e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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